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Plano Geral
novembro de 1999

 

Cartas

De Inácio Araújo, Folha de S. Paulo:

A respeito das duas análises muito interessantes sobre Dois Córregos, acho que valeria dizer o seguinte:
Sobre a primeira, de Ruy Gardnier: com efeito, o acontecer é um fundamento profundo do cinema do Reichenbach. O acontecer e a transformação que ele acarreta.
O que vejo como novo, e arriscado (mais do que audacioso; mais clássico do que inovador), neste filme, é o trabalho em dois tempos, até trazê-los à simultaneidade, na seqüência final, quando Beth Goulart olha pela janela do carro e vê uma cena do passado, como num tempo reencontrado e, simultaneamente, definitivamente perdido.
Sobre a segunda, de Bernardo Oliveira, em que o trabalho sobre o clichê é relevado (também, acredito, de maneira muito pertinente), duas surpresas. A primeira de que pessoas considerem esse cinema "mal feito". Queria saber o fundamento, por mais tolo que seja, desse tipo de afirmação. A segunda diz respeito aos filmes de Reichenbach considerados sucessos, que me parece um pouco equivocada. Não se pode dizer que Alma Corsária tenha sido um sucesso, exceto, talvez, junto a um público muito específico (justamente esse público cinéfilo de que fala o artigo).
Ao contrário, a maior parte dos filmes de Reichenbach foram imensos sucessos de público, sobretudo os da fase da "pornochandada". Imensos e, quase sempre, muito surpreendentes para os produtores e para todo mundo, já que eram filmes bastante complexos, porém absorvidos com muita fluência por um público muito popular. Penso que em grande parte o que o distingue e o particulariza é essa coragem de se expor para o público popular, de dialogar com ele, e também a capacidade de compreender muito bem justamente esse público que hoje desapareceu das salas e que sustentava o cinema nacional (sem o qual falar de cinema industrial, como se tem falado tanto nesses anos 90, é uma balela diabólica).
Me parece que essa questão é digna de ser agitada: a política cultural, ou ausência de, para cinema. Fala-se de financiar reequipamento de salas, mas não vi se estabelecerem critério para isso, nem muito menos a exigência de contrapartida. Mesmo considerando as dificuldades para implantar uma política de distribuição, é de imaginar que alguma interferência nesse sentido fosse desejável, a menos que o governo deseje dar dinheiro de mão beijada para os exibidores equiparem cinemas para exibir filmes... americanos.

Bernardo Oliveira responde:

Caro Inácio,
Agradecido pela correção e me desculpando pelo atraso, gostaria de fazer duas observações a respeito:
a) Sou o único membro de Contracampo que não possui internet. Graças a isso, meu atraso.
b) Sua correção me causou um estranho desconforto. É que morando no Rio de Janeiro temos a ridícula sensação de que "somos" o Brasil. Acredito que em Sampa é semelhante. Simplesmente imaginei que Alma Corsária fosse um sucesso de bilheteria. Pelas bandas cinéfilas daqui, este é, disparado, o mais conhecido filme de Reichenbach. Até minha vó viu. Meu erro basicamente foi, além da inconfessável e imperdoável falta de informação, achar que o Brasil do Norte e Sul não consome cinema e negligenciar este fato através de um chutão tenebroso.
c) Por outro lado, este erro não invalida meu argumento. Acredito que Reichenbach realiza um cinema semelhante ao de Pedro Almodóvar. Ou melhor, Almodóvar faz um cinema semelhante ao de Reichenbach. Um cinema de comentários sobre o cinema, de reinvenção de clichês e de retomada de antigas estruturas dramáticas. Ambos realizam na tela e a seu modo uma celebração do gosto pessoal. Comentam esses clichês como um fenômeno diverso do precedente e, muitas vezes, os elevam.
Ficando por aqui e agradecendo mais uma vez,
Bernardo C. Oliveira

De Fausto Oliva, Rio:

"Tudo na tela/Tela: Estudo" é mais do que crítica. A Contracampo presta uma homenagem a Hitchcock e a Lang que eu talvez não fizesse, e nem eles gostariam de ouvir, afinal, como havia os que gostavam do que dizia André Bazin sobre seus filmes (Renoir, Buñuel) também havia, e ainda os há, os que não apreciam, sem cultivar o desprezo de nenhuma ordem, pois a putrefação da vida é o único inimigo desses iluminados, mas respeitando o que vem a ser um gesto de salvaguarda do bem precioso que é o plano filmado (COM GRÃOS E PIGMENTOS, E NÃO COM PÍXELS) e sua naturalmente conseqüente defesa furiosa e voraz da vida.
(Fausto Oliva — Rio)

Filmes na TV
(Godard, Preminger e
um raro Renoir)

Apesar de seu devido lugar ser a tela grande, como se pôde ver em retrospectiva acontecida no começo desse ano, é um grande destaque a exibição em cabo de quatro dos primeiros filmes de Jean-Luc Godard pelo canal Eurochannel (#45, TVA). A partir do dia 4, sempre às 22:00, o espectador da telinha vai poder ver toda a fugacidade da obra de Godard: Acossado, dia 4; O Pequeno Soldado, dia 11; Tempo de Guerra (Les Carabiniers), dia 18; e finalmente O Demônio das Onze Horas (Pierrot Le Fou) no dia 25. Do primeiro pouco resta a dizer: é um dos mais belos filmes de homenagem ao cinema, um dos filmes mais livres e descompromissados da história do cinema. Tempo de Guerra inspira-se em Borges e tem como roteirista Roberto Rossellini para fazer o filme mais banalizador da guerra em todos os tempos. A estratégia é simples: sendo a guerra um assunto tabu, que não é passível de espetáculo mesmo que se tenha diante dele uma certa crítica, trata-se, através de um filme de guerra, de fazer a crítica do filme espetacular e de uma certa lógica da fruição consumista (a sociedade de consumo seria logo depois fortemente criticada por um Debord ou até antes por Adorno e Horkheimer). O Pequeno Soldado, um filme menos conhecido, trata do tema de um soldado que deve realizar uma missão desonrosa e não consegue. Pierrot le Fou é um marco na carreira de Godard e do cinema. Espécie de Acossado selvagem, Pierrot... incorpora uma rede de citações para fazer unicamente um filme sobre a liberdade que acaba soando sempre como uma teoria estética refeita a cada momento. Godard mistura comédia e drama, tragédia e musical para realizar um dos filmes mais amáveis de todos os tempos, e imperdível para qualquer um que admire cinema.

Otto Preminger, de quem aliás Godard era um fã declarado, também terá sua pequena retrospectiva por cabo. São ao todo sete filmes seus que aparecem pela primeira vez na tevê paga. O talento de Preminger privilegia o senso dramático e a mise-en-scène sempre precisa, de contensão e expressividade em cada movimento de câmara. No dia 11 o Canal Cinemax (TVA, #68) exibe Ingênua Até Certo Ponto (The Moon Is Blue, 1953). Depois disso, o Canal Telecine 5 (NET, #65) exibe sempre às 22:00 um filme de Preminger, a partir do dia 15. São eles Passos na Noite (Where The Sidewalk Ends, 1950, dia 15), Anjo ou Demônio (Fallen Angel, 1945, dia 16), Czarina (A Royal Scandal, 1945, dia 17), Êxtase de Amor (Daisy Kenyon, 1947, dia 18), O Leque (The Fan, 1949, dia 19) e A Ladra (Whirlpool, 1949, dia 20). No fim do mês, como que para fechar com chave de ouro, o Canal Films & Arts (TVA, #65) exibe no dia 25 às 23:00 Santa Joana (Saint Joan, 1957), filme tardio inspirado em peça de Bernard Shaw.

O casal de cineastas Agnès Varda / Jacques Demy também merece uma pequena reexibição de seus filmes pelo canal Cinemax (TVA, #68). Primeiramente Jacques Demy. No dia 13, O Segredo Íntimo de Lola (The Model Shop), considerado um de seus filmes mais fracos mas que merece uma olhada, será exibido às 18:45. Em compensação, um de seus melhores filmes, a comédia musical Duas Garotas Românticas, será transmitido no dia 25, às 22:45. Já Agnès Varda é uma cineasta conturbada. Mudando de assunto e de estilo por diversas vezes, fez a obra-prima do charme Cleo das 5 às 7 e também o relativamente acadêmico Jacquot de Nantes, sobre seu marido. A Cinemax transmite o filme sobre videogames Kung Fu Master, de 1988 (dia 17, às 19:30), o feminista e de uma beleza estranha Duas Mulheres, Dois Destinos, de 1980 (dia 20, 00:45) e um de seus filmes mais considerados Le Bonheur (As Duas Faces da Felicidade, 1965).

Continuando nos diretores franceses, seria plenamente verídico dizer que o Brasil não conhece muito bem Jean Renoir. É que apesar de seus filmes serem razoavelmente exibidos nas telas e até por cabo, dificilmente conseguimos ver algum filme depois de 1939, quando foi realizada sua obra-prima, A Regra do Jogo. Os únicos visíveis são os adoráveis Can-Can e As Estranhas Coisas de Paris. Nesse sentido, a transmissão pelo Canal Telecine 5 (NET, #65) de O Segredo do Pântano (Swamp Water) deve ser, e muito, comemorada, pois além de ser de 1941, é o primeiro filme de Renoir feito nos EUA, onde depois faria This Land Is Mine, The Southerner, The Diary Of A Chambermaid (uma outra versão foi feita por Luis Buñuel) e The Woman On The Beach. O Segredo do Pântano passa dia 25, às 23:45. Preparem-se.