Cartas De Inácio Araújo, Folha de S. Paulo:
A respeito das duas análises muito interessantes sobre Dois Córregos, acho que
valeria dizer o seguinte:
Sobre a primeira, de Ruy Gardnier: com efeito, o acontecer é um fundamento profundo do
cinema do Reichenbach. O acontecer e a transformação que ele acarreta.
O que vejo como novo, e arriscado (mais do que audacioso; mais clássico do que inovador),
neste filme, é o trabalho em dois tempos, até trazê-los à simultaneidade, na
seqüência final, quando Beth Goulart olha pela janela do carro e vê uma cena do
passado, como num tempo reencontrado e, simultaneamente, definitivamente perdido.
Sobre a segunda, de Bernardo Oliveira, em que o trabalho sobre o clichê é relevado
(também, acredito, de maneira muito pertinente), duas surpresas. A primeira de que
pessoas considerem esse cinema "mal feito". Queria saber o fundamento, por mais
tolo que seja, desse tipo de afirmação. A segunda diz respeito aos filmes de Reichenbach
considerados sucessos, que me parece um pouco equivocada. Não se pode dizer que Alma
Corsária tenha sido um sucesso, exceto, talvez, junto a um público muito específico
(justamente esse público cinéfilo de que fala o artigo).
Ao contrário, a maior parte dos filmes de Reichenbach foram imensos sucessos de público,
sobretudo os da fase da "pornochandada". Imensos e, quase sempre, muito
surpreendentes para os produtores e para todo mundo, já que eram filmes bastante
complexos, porém absorvidos com muita fluência por um público muito popular. Penso que
em grande parte o que o distingue e o particulariza é essa coragem de se expor para o
público popular, de dialogar com ele, e também a capacidade de compreender muito bem
justamente esse público que hoje desapareceu das salas e que sustentava o cinema nacional
(sem o qual falar de cinema industrial, como se tem falado tanto nesses anos 90, é uma
balela diabólica).
Me parece que essa questão é digna de ser agitada: a política cultural, ou ausência
de, para cinema. Fala-se de financiar reequipamento de salas, mas não vi se estabelecerem
critério para isso, nem muito menos a exigência de contrapartida. Mesmo considerando as
dificuldades para implantar uma política de distribuição, é de imaginar que alguma
interferência nesse sentido fosse desejável, a menos que o governo deseje dar dinheiro
de mão beijada para os exibidores equiparem cinemas para exibir filmes... americanos.
Bernardo Oliveira responde:
Caro Inácio,
Agradecido pela correção e me desculpando pelo atraso, gostaria de fazer duas
observações a respeito:
a) Sou o único membro de Contracampo que não possui internet. Graças a isso, meu
atraso.
b) Sua correção me causou um estranho desconforto. É que morando no Rio de
Janeiro temos a ridícula sensação de que "somos" o Brasil. Acredito que em
Sampa é semelhante. Simplesmente imaginei que Alma Corsária fosse um sucesso de
bilheteria. Pelas bandas cinéfilas daqui, este é, disparado, o mais conhecido filme de
Reichenbach. Até minha vó viu. Meu erro basicamente foi, além da inconfessável e
imperdoável falta de informação, achar que o Brasil do Norte e Sul não consome cinema
e negligenciar este fato através de um chutão tenebroso.
c) Por outro lado, este erro não invalida meu argumento. Acredito que Reichenbach
realiza um cinema semelhante ao de Pedro Almodóvar. Ou melhor, Almodóvar faz um cinema
semelhante ao de Reichenbach. Um cinema de comentários sobre o cinema, de reinvenção de
clichês e de retomada de antigas estruturas dramáticas. Ambos realizam na tela e a seu
modo uma celebração do gosto pessoal. Comentam esses clichês como um fenômeno diverso
do precedente e, muitas vezes, os elevam.
Ficando por aqui e agradecendo mais uma vez,
Bernardo C. Oliveira
De Fausto Oliva, Rio:
"Tudo na tela/Tela: Estudo" é mais do que
crítica. A Contracampo presta uma homenagem a Hitchcock e a Lang que eu talvez não
fizesse, e nem eles gostariam de ouvir, afinal, como havia os que gostavam do que dizia
André Bazin sobre seus filmes (Renoir, Buñuel) também havia, e ainda os há, os que
não apreciam, sem cultivar o desprezo de nenhuma ordem, pois a putrefação da vida é o
único inimigo desses iluminados, mas respeitando o que vem a ser um gesto de salvaguarda
do bem precioso que é o plano filmado (COM GRÃOS E PIGMENTOS, E NÃO COM PÍXELS) e sua
naturalmente conseqüente defesa furiosa e voraz da vida.
(Fausto Oliva Rio) |
Filmes na TV
(Godard, Preminger e
um raro Renoir)
Apesar de seu devido lugar ser a tela grande, como se pôde
ver em retrospectiva acontecida no começo desse ano, é um grande destaque a exibição
em cabo de quatro dos primeiros filmes de Jean-Luc Godard pelo canal
Eurochannel (#45, TVA). A partir do dia 4, sempre às 22:00, o espectador da telinha vai
poder ver toda a fugacidade da obra de Godard: Acossado, dia 4; O
Pequeno Soldado, dia 11; Tempo de Guerra (Les
Carabiniers), dia 18; e finalmente O Demônio das Onze Horas (Pierrot
Le Fou) no dia 25. Do primeiro pouco resta a dizer: é um dos mais belos filmes
de homenagem ao cinema, um dos filmes mais livres e descompromissados da história do
cinema. Tempo de Guerra inspira-se em Borges e tem como roteirista Roberto
Rossellini para fazer o filme mais banalizador da guerra em todos os tempos. A estratégia
é simples: sendo a guerra um assunto tabu, que não é passível de espetáculo mesmo que
se tenha diante dele uma certa crítica, trata-se, através de um filme de guerra, de
fazer a crítica do filme espetacular e de uma certa lógica da fruição consumista (a
sociedade de consumo seria logo depois fortemente criticada por um Debord ou até antes
por Adorno e Horkheimer). O Pequeno Soldado, um filme menos conhecido, trata do tema de um
soldado que deve realizar uma missão desonrosa e não consegue. Pierrot le Fou
é um marco na carreira de Godard e do cinema. Espécie de Acossado selvagem, Pierrot...
incorpora uma rede de citações para fazer unicamente um filme sobre a liberdade que
acaba soando sempre como uma teoria estética refeita a cada momento. Godard mistura
comédia e drama, tragédia e musical para realizar um dos filmes mais amáveis de todos
os tempos, e imperdível para qualquer um que admire cinema.
Otto Preminger, de quem aliás Godard era
um fã declarado, também terá sua pequena retrospectiva por cabo. São ao todo sete
filmes seus que aparecem pela primeira vez na tevê paga. O talento de Preminger
privilegia o senso dramático e a mise-en-scène sempre precisa, de contensão e
expressividade em cada movimento de câmara. No dia 11 o Canal Cinemax (TVA, #68) exibe Ingênua
Até Certo Ponto (The Moon Is Blue, 1953). Depois disso, o Canal Telecine 5 (NET,
#65) exibe sempre às 22:00 um filme de Preminger, a partir do dia 15. São eles Passos
na Noite (Where The Sidewalk Ends, 1950, dia 15), Anjo ou Demônio
(Fallen Angel, 1945, dia 16), Czarina (A Royal Scandal, 1945, dia 17), Êxtase
de Amor (Daisy Kenyon, 1947, dia 18), O Leque (The Fan, 1949,
dia 19) e A Ladra (Whirlpool, 1949, dia 20). No fim do mês, como que
para fechar com chave de ouro, o Canal Films & Arts (TVA, #65) exibe no dia 25 às
23:00 Santa Joana (Saint Joan, 1957), filme tardio inspirado em peça de
Bernard Shaw.
O casal de cineastas Agnès Varda / Jacques Demy também
merece uma pequena reexibição de seus filmes pelo canal Cinemax (TVA, #68).
Primeiramente Jacques Demy. No dia 13, O Segredo Íntimo de Lola (The
Model Shop), considerado um de seus filmes mais fracos mas que merece uma olhada, será
exibido às 18:45. Em compensação, um de seus melhores filmes, a comédia musical Duas
Garotas Românticas, será transmitido no dia 25, às 22:45. Já Agnès Varda é
uma cineasta conturbada. Mudando de assunto e de estilo por diversas vezes, fez a
obra-prima do charme Cleo das 5 às 7 e também o relativamente
acadêmico Jacquot de Nantes, sobre seu marido. A Cinemax transmite o
filme sobre videogames Kung Fu Master, de 1988 (dia 17, às 19:30), o
feminista e de uma beleza estranha Duas Mulheres, Dois Destinos, de 1980
(dia 20, 00:45) e um de seus filmes mais considerados Le Bonheur (As Duas Faces da
Felicidade, 1965).
Continuando nos diretores franceses, seria plenamente
verídico dizer que o Brasil não conhece muito bem Jean Renoir. É que apesar de seus
filmes serem razoavelmente exibidos nas telas e até por cabo, dificilmente conseguimos
ver algum filme depois de 1939, quando foi realizada sua obra-prima, A Regra do
Jogo. Os únicos visíveis são os adoráveis Can-Can e As
Estranhas Coisas de Paris. Nesse sentido, a transmissão pelo Canal Telecine 5
(NET, #65) de O Segredo do Pântano (Swamp Water) deve ser, e muito,
comemorada, pois além de ser de 1941, é o primeiro filme de Renoir feito nos EUA, onde
depois faria This Land Is Mine, The Southerner, The
Diary Of A Chambermaid (uma outra versão foi feita por Luis Buñuel) e The
Woman On The Beach. O Segredo do Pântano passa dia 25, às 23:45. Preparem-se.
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