Outras Histórias,
de Pedro Bial (Brasil, 1999)

A obra de João Guimarães Rosa sempre foi problemática quando levada à tela. Vale lembrar uma ocasião em que o próprio escritor se levantou da sala de projeção no meio do filme tamanha a falta de qualidade do filme. Mas quando falamos de qualquer transposição de uma obra literária para a tela, a última coisa que deve importar é se o filme é "fiel" à obra original. Porque se vários filmes têm realmente uma atenção à sua matriz e essa é a maior qualidade deles, na maioria das vezes o respeito é apenas um disfarce para uma falta de criatividade ou de competência narrativa; e igualmente porque os melhores filmes que têm sua origem em narrativas literárias costumam ser aqueles que colocam o autor em perspectiva, como que entre parênteses, para poder criar o seu próprio caminho no meio de um outro universo, que deve — através do cinema — tornar-se seu próprio.

Não podemos dizer que Outras Histórias se filie a nenhuma dessas duas características maiores da adaptação literária. Percebe-se que todo o cuidado da recriação feito por Pedro Bial não remete simplesmente a uma literatice didática para ilustrar os personagens de Guimarães Rosa. Mas tampouco podemos dizer que Bial tenta nesse filme traçar seu próprio caminho no cinema. Filme-homenagem, Outras Histórias se aproxima antes ao formato de ode, por todos os enquadramentos pouco usuais, pela direção de arte fantasística — mas que entretanto atinge uma beleza para além do superficial —, pelos movimentos de câmara à grande autor, etc. No meio de toda essa gramática ousada, entrevemos as reais estrelas do espetáculo: não o diretor, não os atores, mas os personagens, os tipos & linguagens roseanos que deles provém. Daí a escolha, em grande parte acertada, de fazer sair da boca dos personagens as frases originais. Mais que em Um Copo de Cólera, esse artifício literarizante/teatralizante respeita a intenção primeira do diretor.

Mas é de se perguntar se a escolha de Pedro Bial não nos reserva algumas limitações. Ganhamos o texto e a encarnação de Guimarães Rosa nos personagens, mas não perdemos com isso alguma coisa? Na transição de uma obra à outra, sente-se a falta de algo? A resposta é positiva. É impossível passar do texto original ao filme sem dar conta de que este último ressente-se de um pouco mais de vida, de desprendimento. Porque por mais belas e exatas possam ser certas imagens do filme, percebemos um Outras Histórias que gravita em torno da obra de um outro, mexe e remexe-se em torno de um gênio mas não consegue fugir de sua órbita, traçar a primeira tangente possível para uma via particular de ficcionalização, de fabulação. o trabalho do diretor fica reduzido em Outras Histórias a achar os mais belos equivalentes à beleza literária dos textos e tipos de João Guimarães Rosa. Lamentação que é tanto mais sentida à medida que vamos percebendo que o filme trabalha a partir de uma real preocupação com a criatividade. Só que esta é desviada do seu sentido mais prolífico e enérgico para uma paragem mais acomodada no nome do autor e na simples lembrança de um mundo que está acima de tudo no papel, e não na película.

Se A Terceira Margem do Rio foi bastante criticado — erradamente, acreditamos — por não retratar o universo roseano e sim tentar falar a partir das preocupações do próprio Nelson Pereira dos Santos. Nesse filme o linguajar estranho de Rosa encontra o linguajar comum e realista de Nelson, criando um Pereira meets Rosa. Nada de Bial meets Rosa em Outras Histórias: nele quem brilha e ofusca (com a desvelada permissão do diretor) é Guimarães Rosa, a ponto de Bial ficar afogado por suas próprias imagens. O suplemento vital da literatura roseana se perdeu na passagem para a tela. O filme apresenta um gosto, que não é o gosto de mofo tão caro a certas adaptações literárias brasileiras, mas antes o de um refresco (em oposição ao suco). Um tanto gostoso, sim, mas ressentido das múltiplas alterações que lhe fazem até que chegue à boca de quem o experimenta.

Ruy Gardnier