Os Tecidos Citacionais

por Julien d'Abrigeon

pierrot.JPG (35696 bytes)
Jean-Paul Belmondo em Pierrot Le Fou

"Faço filmes como dois ou três músicos de jazz: a gente
dá um tema, a gente toca e depois tudo se organiza".

Antes de obedecer às opressões narrativas de um roteiro, os filmes de Godard se organizam, à maneira de improvisações, em torno de "temas": as notas desses "temas" consistem muitas vezes em citações e alusões literárias.

Já que o cineasta raramente se prestou à autojustificação, o próprio filme deve poder esclarecer as citações de que, em grande parte, ele se compõe. Comumente, são as próprias citações que se justificam entre elas, criando por sua organização tecidos temáticos, às vezes independentemente da diegese fílmica. Nós daremos a essas organizações o nome de "tecidos citacionais"; pois são tecidos de interação que formam essas acumulações de citações e alusões literárias. Com efeito, elas estão raramente isoladas ou totalmente significantes por elas mesmas, mas funcionando, na maior parte das vezes, em correlação com uma ou várias outras citações com as quais elas se ligam por laços sutis de intermotivações: as citações se respondem, se opõem, se incluem...

Essas interações podem ser de ordem temática, estética... Assim, as citações de Bataille e de Ducasse em Weekend se respondem, além do texto citado, pela aproximação operada ente esses dois escritores da violência, do caos, de uma certa fascinação pelo monstruoso, pelo horrível...

Mas essa escolha de citações parece às vezes determinada de uma forma diferente da forma temática. por laços que seriam também estéticos: notadamente, em O Desprezo, entre Hölderlin e A Odisséia, freqüentemente evocada na obra do poeta alemão; ou em Acossado, ente William Faulkner e os filmes noir interpretados por Humphrey Bogart, Faulkner tendo escrito ente outros os roteiros de À Beira do Abismo e de Uma Aventura na Martinica, ambos de Howard Hawks.

Essa organização "em teia de aranha" das citações que se automotivam umas as outras, e criam aos poucos um tecido, é muito perceptível em Pierrot Le Fou, onde vários tecidos estão presentes (a morte, a liberdade, a vida...). Nós propomos estudar um tecido original, o dos "homens duplos", para ilustrar essa organização particular das citações e alusões na obra do cineasta; organização presente desde Acossado ou O Pequeno Soldado e que depois se aperfeiçoa até tornar-se a própria trama, como os filmes de sua produção atual. Godard, com efeito, decidiu não mais "contar histórias": assim, Nouvelle Vague "é em torno" do eterno retorno, Infelizmente Para Mim sobre a ressurreição, demonstrando assim que o filme se faz além da diegese, pelos temas e questões que ele desvela e suscita.

O interesse capital desses tecidos citacionais é "enxertar" no filme um desenvolvimento temático independentemente do desenrolar narrativo. A aposta do filme, sua razão de ser, não está na progressão narrativa, mas em uma progressão segunda, ao mesmo tempo fílmica e textual (a citação sendo, na origem, o texto). E essa progressão só está garantida pela presença dos tecidos citacionais que operam-na. E a recepção da riqueza de sentido que ela oferece só pode acontecer pela compreensão (a identificação e a interpretação) desses tecidos.

O tecido citacional dos
"homens duplos"
em
Pierrot Le Fou

Antoine Duhamel, quando escrevia a música de Pierrot Le Fou, compôs dois temas para o personagem interpretado por Belmondo: o de Pierrot e o de Ferdinand. Pois é um ser duplo, um ser complexo que nós vemos agir. Assim, Marianne não se engana quando descreve-o no pequeno poema que ela escreve sobre ele, e que é na verdade de Prévert: "Terno e cruel / real e surreal / apavorante e engraçado / noturno e diurno / sólito e insólito / belo como ninguém".

Belmondo é então Pierrot e Ferdinand. Todo o personagem é contido nesse "e", ele é esse "e" que Godard tenta retratar, como Velazquez, segundo Élie Faure, é o pintor do "entre":

"Ele só apreende do mundo as trocas misteriosas, que fazem penetrar umas nas outras as formas e os tons, por um progresso secreto e contínuo e nenhum choque, nenhum sobressalto denuncia ou interrompe essa marcha."

A respeito de um filme mais tardio, Six Fois Deux, Gilles Deleuze esclarece um pouco essa estética do cineasta:

"O que conta nele não é 2 ou 3, não importa quanto, é E, a conjunção E. O uso do E em Godard é o essencial. É o importante porque nosso pensamento é principalmente modelado pelo verbo ser, É. (...) O E não é nem um nem outro, é sempre ente os dois, é a fronteira (...) O objetivo de Godard: "ver as fronteiras", ou seja, fazer ver o imperceptível".

O personagem é então um ser complexo que contém em si, como cada homem, antagonismos, ou antes ele é um homem, em sua totalidade, sua globalidade, esse mundo "triste e feliz" de Prévert. E esse ser que, como nota Freddy Buache, fala "ora como um poujadista desprezível, ora como Blaise Pascal", é ao mesmo tempo Ferdninad e Pierrot; mas que é/são ele(s)?

Examinemos primeiramente Pierrot. Pierrot é, primeiramente, o sobrenome que Marianne dá a Ferdinand e a única justificação que ela dá parece ser bem fraca numa primeira visão:

Marianne: Não, Pierrot
Ferdinand: Não preciso dizer de novo que me chamo Ferdinand.
Marianne: Sim, mas não se pode dizer: (ela canta como Au Clair de la Lune) "Mon-a-mi-Ferdinand"...

O comentário parece numa primeira visão simplesmente engraçado, mas de fato ela é fundadora para o personagem: o Pierrot do filme é muito próximo do Pierrot lunar, o da commedia dell’arte. Esse universo é onipresente no filme, e o tema musical da canção popular reaparecerá em seguida. Mas sobretudo, Pierrot é rodeado por seus comparsas da commedia dell’arte. Com efeito, no muro, cartões postais representando Arlequins ou o Pierrot de máscara (ser duplo!) de Picasso contribuem para integrar o personagem a esse mundo de pantomima.

Eliette Vasseur descreve esse Pierrot lunar como "um apaixonado ingênuo e enregelado, de quem as garotas zombam e que os homens exploram". Tal é também o nosso Pierrot, manipulado por Marianne e Fred, vego pelo amor.

Além disso, duas utilizações do personagem Pierrot podem ser aproximadas de Pierrot Le Fou. Em Pierrot Romulus ou o raptor polido, paródia de 1722 de A.R. Lesage e d’Orneaval du Romulus de Lamotte, Pierrot seduz a sabina Hersilie como Pierrot seduz Marianne — Marianne que é baby-sitter como Colombina é criada. Mas seria necessário aproximar nosso Pierrot do de Edmond Rostand: em Os Dois Pierrot ou a Ceia Branca, de 1891, ele coloca em cena dois Pierrot: um, Pierrot I, sempre feliz, Pierrot II, sempre triste; mas os dois amam Colombina. Ainda um ser duplo, triste e feliz. Mas esse Pierrot lunar, esse que não quer pegar sua pluma para poder escrever uma palavra ou duas em seu caderno, essa face escondida de Ferdinand toma algumas vezes a palavra e, se nós esquecermos por alguns instantes que ele se chama Ferdinand, tudo se esclarece:

Marianne: Dá pra ver bem a Lua, né?
Ferdinand: Não vejo nada de especial.
Marianne: Bem, eu vejo um cara. É talvez Leonov, ou aquele americano, White?
Ferdinand: É, eu vejo ele também, mas não é nenhum popov nem um filho do Tio Sam. Eu vou te dizer o que é.
Marianne: Quem é?
Ferdinand: É o único habitante da Lua. Você sabe o que ele está quase fazendo? Ele está à beira de sair fora o mais rápido possível.
Marianne: Por quê?
Ferdinand: Olha...
Marianne: Por quê?
(contracampo da Lua)
Ferdinand: Porque ele não agüenta mais. Quando ele viu desembarcar Leonov, ele ficou feliz. Até que enfim alguém com quem falar, depois de eternidades em que ele era o único habitante da Lua. Mas Leonov tentou colocar todas as Obras Completas de Lenin na cabeça dele. Aí quando White desembarcou, ele se refugiou com o americano. Mas ele nem teve tempo de dizer bom dia, que o outro enfiou uma garrafa de Coca-Cola direto por sua garganta, forçando-o a agradecer primeiro. Então ele está de saco cheio. Ele deixa os americanos e os russos lá e sai fora.
Marianne: Mas para onde ele vai?
Ferdinand: Pra cá. Porque ele acha que você é bonita. Ele admira você. Eu acho que as tuas pernas e o teu peito são comoventes.

Essa passagem sub-reptícia e inesperada da terceira à primeira pessoa completa a identidade "lunar" de Pierrot, exilado na Terra, na ida real. A terceira pessoa sendo, segundo Benveniste, uma "não-pessoa" e o eu, uma pessoa, assistimos a uma transferência de estatuto para Pierrot, primeiramente "personagem" narrado (o locutor é ainda Ferdinand), "não-pessoa" ainda recalcada, ele torna-se instância narradora, "pessoa" aceita, incarnada.

Pierrot está próximo também do Pequeno Príncipe, deixando seu planeta, partindo para a descoberta dos mundos, se ligando por amizade com uma raposa... Mas esse fragmento é bastante singular no filme, é um dos raros instantes em que Ferdinand deixa Pierrot falar, não oculta-o por meio de um de seus rudes "eu me chamo Ferdinand".

Enfim, o traço característico que distinguia fisicamente Pierrot de seus comparsas em suas pantomimas mudas — traço que ele manterá em todas as suas "incarnações" posteriores — é seu olhar abobalhado-esperançoso. O ator se maquia de branco: então, os espectadores reconhecem nele Pierrot. No filme, para tornar-se Pierrot, o personagem também pinta o rosto, mas o branco dá lugar ao azul, cor do "jusqu’au boutisme", do desespero extremo, cor desse mar aliado, "alado", com o céu, também azul, a cor de Ferdinand no rosto de Pierrot, a "loucura" de Pierrot, a esquizofrenia da máscara. A menos que esse azul não provenha igualmente de uma reivindicação estética. Alguns evocam, justamente, os nomes de Klein, de Picasso, de Staël, como Jacques Aumont evocando "Godard pintor":

"Se Ferdinand se pinta de azul no momento de se matar, é talvez porque, antes, evocando o suicídio de Nicolas de Staël (na cena do café), ele estava sentado diante de um pano azul e que, antes ainda (na recepção Expresso) é num filtro azul que aparece a Tristesse d’Olympio (e ainda: a conjunção do azul e do suicídio poderia evocar Yves Klein, morto em 1962, pouco antes do filme)."

Mas seria, estranhamente, antes o nome de Auguste Renoir que se imporia, estando o autor presente por suas obras citadas, "coladas", diria Aragon, mas também pelo patrônimo de Marianne. Ora, uma das frases mais célebres do pintor é a da invenção do impressionismo:

"Numa manhã, faltou a um de nós o preto, e daí usou-se o azul: nasceu o impressionismo".

Pierrot Le Fou, primeiro filme impressionista? O último plano, o mar e o céu misturados nos reflexos do sol, parece revelar a importância de Monet e de outros impressionistas (ou de seus precursores como Turner) em quem, também, "o sol encontra-se com o mar" nesse horizonte que é uma aliança mais que uma ruptura; Godard filma o mar quando os violentos reflexos do sol cintilam formando grandes traços, toques fluxos mas precisos, como em algumas dessas telas impressionistas onde o céu e o mar são apenas um, uma, a Eternidade...

mas alguns outros Pierrot podem ser evocados. Overdadeiro Pierrot le Fou, bem entendido, mas, parece, Godard só retém o nome e uma pequena propensão criminal! "Meu próximo filme é um filme de aventura que tem por título Pierrot Le Fou. É o nome do personagem: ele não tem nenhuma relação com aquele em que você pensa". Pierrot seria então "o nome do personagem"! Outro Pierrot, o de Pierrot meu amigo de Raymond Queneau, pois, se nenhuma citação é feita e nenhum laço pode ser feito com a diegese do romance, o personagem é de qualquer forma ingênuo. Além disso, Godard intitula "Pierrot Mon Ami" um artigo escrito sobre o filme e publicado nos Cahiers. E, em seu lançamento, uma publicidade do filme, certamente escrita pelo próprio Godard, propunha:

Pierrot Le Fou é / Stuart Heisler revisto por Raymond Queneau / O último filme romântico / O technicolor herdeiro de Renoir e Sisley / ..."

Renoir e Sisley...

Rasgado por Pierrot, Ferdinand tem consciência de sua duplicidade: "Não há unidade. Eu devia ter a impressão de ser único, eu tenho a impressão de ser vários". Ele começa então a perceber alguém diferente nele, um embrutecido no vidro, Pascal que percebe o poujadista em si nesse espelho — objeto desdobrador por excelência—:

Marianne: Você está sombrio.
Ferdinand: Tem dias assim, a gente só encontra embrutecidos. Aí a gente começa a olhar num espelho e a duvidar de si...

Esse espelho, é ele também, reflexo e aparência de um outro ser:

"Nós atravessamos a França como aparências / como um espelho"

Considerando-se "como um espelho", ele aceita sua duplicidade, mas ignora se ela é a realidade ou o reflexo, não compreendendo que ser o espelho é ser a aliança dos dois, o "e", o "entre". Godard conduz então seu personagem, como um espelho, ao longo dos caminhos da França como Stendhal, para mostrar, através dele, a deliquescência da sociedade de seu tempo. Ele próprio sublinha essa filiação, ente cinema-verdade, impressionismo e realismo numa homenagem a Henri Langlois:

"Louis Lumière, através dos impressionistas, foi o descendente de Flaubert, e também de Stendhal, de quem conduziu o espelho pelos caminhos"

Outra ocorrência do duplo, Godard "cola", por intermédio de Pierrot, a história de William Wilson, um resumo das aventuras do herói da novela de Edgar Allan Poe:

"Ele cruzou com seu duplo na rua. Ele o rpocurou em todos os lugares para matá-lo. Uma vez feito isso, ele percebeu que era ele próprio que ele tinha matado, e que o que restava era o seu duplo".

Ferdinand estaria à procura de seu duplo para matá-lo, para se matar com ele. A alusão à novela de Poe se inscreve então nesse contexto dos "homens duplos". Mas esse tema é sobretudo iluminado pela longa citação, muito modificada, da Mise à mort de Aragon, citação não apresentada como tal e recitada por uma voz monocórdia e retalhada por Belmondo:

"Talvez – eu sonhe – acordado. – Ela me faz pensar – na música. – Seu rosto. – Nós – estamos – na época – dos homens duplos. – Não precisamos mais de espelhos – para falar – sozinhos. – Quando Marianne diz – "O tempo está bonito" – Nada além. – Em que pensa ela? – Dela eu só tenho essa aparência – dizendo: – "O tempo está bonito" – Nada além. – Como – explicar – isso? – Nós somos – feitos – de sonhos – e – os sonhos – são feitos – de nós. – O tempo está bonito – meu amor – nos sonhos – as palavras – e a morte –O tempo está bonito – meu amor. – O tempo está bonito – para a vida."

Se esses fragmentos de Aragon são citados, é, entre outras coisas, por esta visão do homem duplo que está em questão ao longo do romance. Porque, fora dos fragmentos citados pelo cineasta, Aragon evoca muitas vezes o homem duplo. Notadamente citando-se em uma obra sua anterior, de 1936:

"Nós somos como os outros dos seres duplos. Nós vivemos numa época histórica que se caracterizará talvez um dia por isso: o tempo dos homens duplos. Fiz sempre duas partes de minha vida..."

Aragon faz também alusões ao romance de Stevenson, O Estranho Caso do Dr. Jekyll & do Sr. Hyde, o grande "homem duplo" da literatura. Aragon explica um pouco o que é o "homem duplo":

"os homens duplos... Um que tem função na sociedade, um outro que não tem nada a ver com ela, às vezes que detesta-a, que é contraditório dela... o homem quê!"

É isso que observamos no filme? Aragon cita ainda como epígrafe no capítulo "O Carnaval" o "EU é um outro" de Rimbaud: a alusão parece tão evidente no filme que a frase não tem necessidade de ser citada para estar presente, já que Rimbaud e os homens duplos assombram o filme. Enfim, mesmo se Aragon vai mais longe na multiplicidade dos seres (os "homens triplos" aparecem no capítulo "Le Miroir broit"), uma passagem do romance prova sem equívocos a influência que ele teve na construção do filme:

"Eu já te disse para não me chamar mais de Alfred porque Ingeborg acha esse nome ridículo. (...) Vou te pedir para me chamar de Jacques. Já te disse cem vezes, ou se você preferir, Iago, por que essa cara? Iago, Jacques, como Santiago."

O paralelo é evidente, com essa troca constante, repetida onze vezes, ente Marianne e Ferdinand onde, ao contrário, o personagem recusa seu "pseudônimo", preferindo-lhe seu nome "civil":

– Pierrot!
– Me chamo Ferdinand

Pois se Marianne se dirige a Pierrot ("com sentimentos"), é Ferdinand que responde a ela ("com palavras") e que se afirma então como Ferdinand.

A noção de tecido citacional toma, com esse romance, toda sua dimensão. Com efeito, em Mise à Mort, o capítulo "Segunda carta a Fougère" (de onde são extraídas as citações) começa ele próprio com uma citação da Tempestade de Shakespeare:

We are such stuff / As dreams are made of, and our little life / Is rounded with a sleep..."

que Aragon traduz: "Nous sommes de l'étoffe même dont sont faits les rêves, et notre petite vie est entourée d'un sommeil..." (Somos da matéria de que são feitos os sonhos, e nossa pequena vida é rodeada por um sono..."

Depois, várias vezes, ele repete, re-cita essa frase, remodelando-a, notadamente em:

"E os sonhos são feitos de nós como nós somos feitos de sonhos"

Citando Aragon, Godard cita Sakespeare. Depois, Aragon evoca os personagens da Tempestade, entre os quais um certo... Ferdinand. Tudo se liga. Então, as alusões à Tempestade estão por procurar, e assim,uma réplica repetida várias vezes pelo Ferdinand de Godard, aparentemente anódina – "à Queneau" – assume, pelo viés de Aragon, uma dimensão superior:

Allons-y, Alonso!

Isso pode aparecer como um simples trocadinho comparável a muitos jogos de palavras populares, e fundado numa paronomásia. Mas se há efetivamente uma parte de jogo, é um jogo muito mais complexo: Alonso é o pai do Ferdinand de Shakespeare. Godard explora a mise-en-abyme [literalmente, colocação no abismo; significa um aprofundamente até os limites. NdoT.]da citação citada. Mas isso vai mais longe ainda, quando a obra de Shakespeare, assim introduzida, esclarece o papel de certos episódios cuja utilidade permanecia fluida. Pois se o filme não comporta nem citações literais, nem evocações do nome da peça ou do dramaturgo, A Tempestade em seu conjunto torna-se o objdeto de uma alusão pura. E certas réplicas do Ferdinand de Shakespeare parecem fazer sentido no filme. Assim, os versos 391 e seguintes:

"De onde vem essa música? Dos ares? Da terra? Ela parou. Com certeza, ela acompanha qualquer Deus da ilha. Como eu estava sentado, sempre chorando o naufrágio do rei meu pai, essa música escapuliu de mim para as águas, seus doces sons acalmando todo o conjunto de sua raiva e minha dor. Depois disso eu a segui ou antes foi ela que se atirou a mim. Mas ela morreu... Ah, ei-la reaparecendo"

Essa passagem da peça aparece em Pierrot Le Fou numa forma modificada, pela colagem de um texto inesperado e forçosamente um pouco provocador, já que se trata de um esquete de Raymond Devos:

Devos (sentado na borda do cais): Ah, esse ar, você não pode saber o que ele evoca para mim. Esse ar, você ouve, aí...
Ferdinand: Não, eu não ouço nada.
Devos: Esse ar é toda a minha vida, toda minha vida. Ele me crrr... Quando eu ouço, ele me crrrrr... (...) Você está ouvindo?
Ferdinand: Não!

Esse paralelo confuso é precisado quando, alguns versos depois, Ferdinand sugere ir à ilha de onde provém a música, como "nosso" Ferdinand, que deixando Devos, parte para essa última ilha onde ele cantará ainda a música desse outro louco. Mais uma vez, as citações chamam as citações.

Mas, certamente, Ferdinand Griffon não é somente um eco do personagem de Shakespeare. Ele é também esse Ferdinand mais claramente evocado, Louis Ferdinand Céline, ou ao menos o Ferdinand que se apresenta em seus romances. Romance, fazendo eles mesmos o objeto de alusões simples como a Viagem ao fim da Noite:

Marianne: Em todo caso, você me disse que iria até o fim.
Ferdinand: Até o fim da noite, sim

ou citações, como A Ponte de Londres ou Guignol’s band II. O romance e o próprio Céline são "atualizados" por Marianne:

Marianne: Achei isso por acaso. O escritor tem o mesmo nome que você.
Ferdinand: Ah! Ferdinand!

Notemos que Marianne considera aqui "Ferdinand" como o nome do herói. Como La Mise à mort, A Ponte de Londres acabava de ser publicado pela primeira vez em 1964, três anos depois da morte de Céline. Godard perfura a atualidade literária, uma atualidade que incomoda, como nota o próprio Aragon:

"Vão criticá-lo nessa passagem por citar Céline. No caso, Guignol’s band: se eu fosse começar a falar de Céline, não acabaríamos hoje. (...) [Sobre as querelas sobre a vida e a obra de Céline] São os mal-entendidos dos pais e dos filhos. Vocês não desfarão isso por ordens: "Meu jovem Godard, você está proibido de citar Céline!". Então ele cita."

Ferdinand guarda então do personagem de Céline essa negligência, essa via : anárquica" que provocam os censores, esse universo de violência que o rodeia, esse meio de criminosos, como um filme noir, um filme de "Stuart Heisler revisto por Raymond Queneau"!

A esse respeito, nós poderíamos também aproximar nosso personagem do Ferdinand de Intriga e Amor, a tragédia de Schiller, sendo que, excetuado o nome, nada pareça confirmar essa alusão. Entetanto, esse Ferdinand não aparece como "a voz mais eloqüente que se tenha dado, no Sturm und Drang, à revolta dos filhos contra os pais". Todavia, diferentemente do personagem de Godard, esse Ferdinand reclama honestidade.

Mas voltemos a Céline e vamos reler a passagem cujos fragmentos são lidos, no meio do filme, por Ferdinand:

"Quero queimar antes do frio na plena brasa do milagre... eu me jogo no pleno dentro, eu bufo, as chamas me circundam, me tomam, me levantam entre elas ternamente, um turbilhão! Eu sou de fogo!... Eu sou todo luz!... Eu sou milagre!... Não ouço mais nada!... Eu me elevo!... Eu passo nos ares!... Ah! É demais!... Eu sou pássaro!... Eu dou voltas!... Pássaro de fogo!... Eu não sei mais!... é difícil de resistir!... Eu uivo de prazer..."

Essa passagem, primeiro citada diretamente, é de alguma forma encenada, no extremo fim do filme. O Ferdinand de Céline, queimando de amor por Virginie, torna-se aqui Ferdinand uivando de dor e de prazer, pássaro de fogo agitando suas asas de Nitramite antes de se consumir.

Pode-se perguntar quem é quem? Quem morre, o Pierrot azul ou o pássaro da violência? Ferdinand acende o pavio e Pierrot tenta apagá-lo, a menos que não seja o inverso. Esta dualidade de Pierrot já tinha sido evocada por Eluard num de seus primeiros poemas:

Não, eu não concebo Pierrot
pervertido, infame e perturbado.
Se Pierrot não é um anjinho,
Não é Pierrot, é seu duplo,
Um duplo que copiaram errado
e que um poeta, espremido de vício,
O espírito pouco certo, caluniou
Sem que ninguém reclame o malefício
Fizeram dele um celerado
Um feudal ladrão, um bêbado.
É preciso, para admitir isso
Jamais ter visto um carrancudo...

Mas não são, como em Eluard, um anjo e um celerado, ou como em Aragon, um ser da sociedade e um ser liberado, mas dois homens da liberação: um pelo sonho, o espírito, sempre um pouco na lua e ainda um pouco enganado por esse mundo em torno dele como um sono ("We are such stuff..."); o outro, Ferdinand, se liberando pela ação, pela violência, a omissão das regras e das leis, o "jusqu’au boutisme" que vai ao fim da noite, à morte, sua morte e a preparação da morte (mise à mort) de Pierrot, como William Wilson acreditando matar seu duplo e matando a si mesmo, ou seja, morrendo ao querer destruir sua dualidade, matando esse alter ego, o outro que é EU, e só compreendendo tarde demais que ele É justamente nesse E, "EU E um outro", "Pierrot É Ferdinand" – e, mesmo que ele recuse sem cessar, "Ferdinand É Pierrot".

Mas além do personagem, é igualmente de arte que se fala. Se Velasquez aperfeiçoava os personagens, anãos ou reis, era para pintar a vida, as trocas secretas entre eles: Godard fala também da vida, do cinema sobre a vida. O laço se faz por Céline e, mais precisamente, através de uma passagem não citada de Guignol’s band II na qual Vireginie fala do cinema como Rostand de Pierrot, e Prévert do mundo segundo Picasso:

"Você é como o cinema!" eis o que ela descobriu! "Você é triste! e depois você é alegre...!" eis o efeito de minha pantomima... Não era lisonjeiro... ela estava certa agora, eu era como o cinema! Como o cinema ou nada!"

O próprio Godard confirma que esse ser duplo, real e surreal, é a incarnação do cinema:

"William Wilson, que imaginou ter visto seu duplo na rua, o perseguiu, o matou, percebeu que era ele próprio e que ele, que permanecia vivo, não era ninguém além de seu duplo. Como se diz, Wilson se fazia cinema. Tomado ao pé da letra, essa expressão nos dá aqui uma idéia muito boa, ou definição enviesada, dos problemas do cinema, onde o imaginário e o real são nitidamente separados e entretanto se juntam, como essa superfície de Moebius que possui ao mesmo tempo um e dois lados, como essa técnica de cinema-verdade que é também uma técnica da mentira."

Assim, esse tema do homem duplo, que é de fato uma das apostas maiores do filme, e que não está presente na diegese do filme (ela não é, ao menos, recebida como tal), aparece somente através desse emaranhado de citações e de alusões (associadas a alguns atos do personagem) que se respondem e se arrastam umas as outras formando um tecido citacional portador e produtor de sentido.

A utilização desses tecidos citacionais em torno de uma temática se tornará cada vez mais importante no cinema de Godard. O interesse dessa "textualidade" segunda, oferecida por essa organização em tecidos, justifica plenamente a utilização das citações no cinema de Godard. Todavia, entrecortando algumas vezes esses tecidos, uma outra "textualidade" segunda se organiza em torno de estéticas de autores literários.