A consciência que deu mofo?
— Texto sobre Orgia ou o homem que deu cria,
de João Silvério Trevisan —

por Bernardo Oliveira

Meados de junho, noite chuvosa e inusitada (imaginem: Vasco, campeão da Taça Rio 99!...). Como encerramento da Mostra Universitária, o Cine Arte UFF exibiu a antológica fita de João Silvério Trevisan: Orgia ou o homem que deu cria, filme arrebatador, símbolo de uma conjuntura cultural fértil e auto destrutiva. Se por um lado festejamos tamanho achado, por outro somos obrigados a chorar nossa miséria. Não digo esta miséria-mistério, tão profundamente comentada pelo filme, posta a natureza alegórica e o tom caricatural dos personagens. Falamos de uma miséria mendiga, daquela que empapa o vidro do carro, que interrompe a viagem de ônibus "trazendo na promoção!!..." e que teima em manter Dona Lúcia Rocha e a obra de Glauber no relento.

Orgia é um filme raro, sem espaço nem reconhecimento. Nem bem ocupou as salas de exibição, muito menos, preencheu-as. Sofreu problemas com a censura da época sob alegações, senão histriônicas, banais. Após três anos, congelando nos porões da censura, João Silvério Trevisan recebeu uma carta cujo conteúdo, segundo Paulo Emílio, franco admirador, é "vago". Isto é: filme brasileiro, mal divulgado, mal distribuído, mal lançado, censurado, cortado, estuprado, etceterado,...

O problema é que Orgia é um filme revelador. A censura brasileira, admiravelmente inteligente, percebeu o fato inegável: João Silvério organizou uma tábua de tipos humanos, cuja forma mais aproximada lembra um bloco carnavalesco. Esta forma é primorosa na medida em que volatiliza idéias de Brasil. E se organiza deste modo: um indigente parricida que conhece um presidiário, e juntos encontram um intelectual, que não entra na turma ("isso tudo é muito bonito!"). Um cangaceiros prenhe, índios canibais, um anjo de asa quebrada e um Deus morto, um burocrata, um travesti que mexe com a libido de todo o grupo, festa e mais festa.

O que teria visto a censura de tão repreensível nesta paisagem orgiástica. Teria a pantomina lhe causado mal-estar pelas classes médias, sempre em busca de um acalanto para sonhos juvenis. Não. Ela viu exposto um atavismo carnavalesco, um carnaval de sombras, uma desconfortável alegria, que não soube classificar. Posso vê-los perguntando: será uma convocatória? baderna? lixo? Ainda por cima, sob o título provocativo de Orgia, isto é, mixórdia racial, bagunça institucional e outras "mazelas". O homem que dá cria é o toque de absurdo: a um só tempo, revelação do sonho, onde somos potência pura e instauração do caos, placenta onde encontramos morada.

O problema que este filme sugeriu, naquela estranha noite de junho (Vasco campeão, vejam só!...) açambarca para o sujeito que vos escreve, dois limites: primeiro o de uma realidade caduca e da qual não podemos mais fazer vista grossa: o cinema brasileiro é um conjunto de erros e acertos que forma uma matéria viva e estimulante. Fugir destas possibilidades é papel de censor. Orgia é parte de uma coleção de títulos que aponta direções para um entendimento abrangente de nossa cinematografia ("de resto, não existe cinema sem cinematografia", diria Eisenstein). Nosso cinema precisa existir e sua memória idem. O segundo limite é prolongamento deste, que é a busca, o apelo, para que o Cine Arte UFF e os organizadores da Mostra Universitária repitam a Orgia. Para que reflitamos o conteúdo do filme em viva analogia com a realidade do cinema brasileiro, seu presente e sua memória.

Por outro lado, o cinema é uma linguagem.