Orfeu, de Carlos Diegues
(Brasil, 1999)

Temos motivos suficientes para acreditar que Orfeu é, em termos de indústria e de lançamento, o acontecimento cinematográfico mais importante para o cinema brasileiro. Foram reunidos diversos intelectuais em torno do filme, ora para embelezá-lo ora para tentar dar a justa palavra acerca da vida e dos costumes das gentes do morro: Hermano Vianna, Hamilton Vaz Pereira, Paulo Lins, João Emanuel Carneiro, Caetano Veloso e o próprio Carlos Diegues, diretor e autor do roteiro final do filme. Afora isso, a grande publicidade, uma publicidade que espera o encontro do brasileiro com seu cinema, algo de patriótico mas também de muito populista. Isso vem de encontro ao fato de ser o próprio Carlos Diegues o populista-mor do cinema brasileiro, o cineasta que filma o povo de tal forma que o antigo DIP não só aprovaria como concederia menções honrosas.

A tarefa não é fácil: transformar a peça de Vinícius de Morais numa crônica sobre a favela de hoje. Não só a beleza do morro, mas também os problemas dos traficantes com a polícia. Não só a musicalidade do samba e do funk, mas também as precárias condições de vida por que passam os moradores. Acreditaria-se a tarefa mais pretensiosa ainda: taçar o justo perfil do que hoje é o morro; colocar no filme tudo que o morro é. Daí a sensação, que vem logo no início do filme, de que Carlos Diegues abandona a história de Orfeu para nos fornecer um suposto modus operandi da favela: os traficantes que resolvem fazer sua própria justiça, os policiais que tratam os policiais do morro como cachorros, a influência da propaganda americana no coadjuvante Máicol, a boemia sambista que vara as noites nas rodas animadas e o funk que a rádio comunitária transmite. Em suma, talvez tudo que o morro talvez nem seja, mas que os jornais e as televisões exibem como sendo a vida nas favelas.

O cinema de Carlos Diegues em Orfeu é o oposto do trabalho do antropólogo. Enquanto este tenta despir-se de todos os preconceitos e de todos os saberes preexistentes ao seu objeto de estudo, o sr. Diegues sobe ao morro com todas as idéias já feitas e mediatizadas por quem cria a imagem externa das favelas. longe de dar uma outra cara ao morro, longe de buscar uma outra interpretação, em suma, longe de fazer ficção, Orfeu não é um filme capaz de sair do joguete de cartas marcadas que é essa 1h50min de lugares-comuns sobre os que habitam esse universo tão complexo. O Orfeu de Vinícius de Morais é uma fábula, mas em Orfeu não há fabulação. Carlos Diegues não dá nova cara a ninguém, nem essa parece ser sua intenção.

A câmara do filme é inquieta. Mas se outrora isso significava algo de bom, hoje é exatamente o que falta para transformar Orfeu num filme de maior interesse. Não há real mergulho (há um mergulho falso, na ora do entrelaçamento amoroso, mas para Carlos Diegues o amor na cama são apenas nauseantes travelings de 360º acima dos personagens abraçados). Não vemos onde está a emoção de filmar, e nem nos parece óbvio o porquê de uma câmara aparecer lá. O problema é que, sem mergulho em qualquer universo, não há personagens: temos apenas o arquétipo-Orfeu, o arquétipo-Eurídice, o arquétipo Máicol (que não deixam de ter seus instantes de alguma emoção), mas o ue mais flagela são os arquétipos traficante, policial, morador, evangélico, macumbeira, etc.

O olhar de Orfeu é um olhar de fora disfarçado de olhar de dentro. Vemos no filme o roteiro dar conta de todos os aspectos (pelo menos todos os que a nossa mídia mostra) da favela. Mas um caso impressiona, o da música. O rap-funk jamais aparece em seu processo de fabricação. Está apenas no rádio, como música de fundo que comenta a situação do morro. Quanto ao samba, é bem ao contrário: não só temos a experiência da Escola de Samba, como também vemos a memorável aparição de Nelson Sargento & bambas numa digníssima roda de samba. Rap pelo rádio e o samba, ah! o velho samba, em seu lugar de direito, nada menos do que o morro idealizado. O filme nos dá a impressão que o rap nunca é feito (ou que é feito fora da favela), mas simplesmente veiculado. E quando ele se reúne em apoteose com o samba, na segunda tentativa de gesto ficcional do filme (a primeira era pra ser um fait-divers, mas acaba sendo ficção pelo trabalho de Cássio Gabus Mendes, mesmo que um tanto constrangido), não se enganem: é remake. Remake de Mestre Jorjão, porque remake é a única coisa que Carlos Diegues tem feito.

Entende-se um remake quando a finalidade é dar outra cara. Mas quando é apenas para assinar embaixo do já feito, do institucionalizado, é de se duvidar de seus propósitos. De uma Tieta banal que em nada diferia daquela que foi feita pela Rede Globo até um Orefeu mais banal ainda, que não reprisa Vinícius de Morais mas repisa toda a imagem que se tem da vida no morro, Carlos Diegues vai se especializando como o cineasta anti-renovação. Talvez seja ele assim o símbolo maior do cinema brasileiro nos anos de sua retomada: nada de retomada dramática, nenhuma construção de imaginário (salvo as exceções costumeiras, Sganzerla, Araújo, Amaral, Reichenbach), mas simplesmente uma renovação de produção, buscando sucesso de exibição. Esperamos que pelo menos nisso o filme seja bem sucedido, pois parece ser seu objetivo principal.

Ruy Gardnier