O Espelho (Ayeneh),
de Jafar Panahi (Irã, 1998)

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Ymina Mohammad-Khani em O Espelho

O primeiro plano revela um filme muito diferente de O Balão Branco. Vemos uma saída de escola, com as mães buscando as filhas, a câmara fixa diante do quadro; aos poucos, a câmara se movimenta pela rua, onde um velhinho tenta atravessar a rua e acaba não conseguindo pela loucura do trânsito; a câmara continua avançando e já estamos virados 180º da escola; as pessoas continuam a atravessar a rua, e o movimento continua; aos poucos, vamos vendo novamente a escola,mas dessa vez não há mães, apenas uma criança; a câmara deu uma volta de 360º e de uma só vez ela revelou já toda a história do filme: para chegar em casa, a menina vai ter que aprender a responsabilidade de poder encontrar o caminho sozinha, com todos os perigos que implica o trânsito enlouquecido e a pressa dos cidadãos de Teerã.

Jafar Panahi faz grande evolução com O Espelho. O tema, a responsabilidade da criança, não difere muito da proposta de seu primeiro filme, O Balão Branco, mas toda a construção do filme, incluindo aí todos os riscos estéticos – o autorismo, o maneirismo que afeta um bocado o cinema de um, digamos, Makhmalbaf – procura fazer o espectador prestar atenção no caráter construtivo da imagem, para um fora – da imagem, do discurso – que constrói a compreensão do filme tanto quanto o seu dentro (o que realmente é mostrado). Proposta que é quase oposta à de seu primeiro filme: se em O Balão Branco o encanto do filme devia-se à adequação naturalista das situações – um acontecimento banal, atuação límpida como se estivéssemos na vida real, pouca ou nenhuma trilha de som –, o estatuto da imagem nesse segundo filme é absolutamente diferente. Em O Espelho, trata-se de realizar uma pedagogia do olhar, um ensinar a ver. A câmara passa a sustentar uma outra relação com aquilo que ela filma, não mais de submissão ou naturalismo; agora, a relação é de construção: eu, cineasta, passo a me relacionar com você, realidade, para construir o meu discurso, para fazer a minha história.

Esse é o ato que faz de um diretor um artista. Não mais filmar o mundo, restituir o visível. A importância da arte, já nos diz Klee, é tornar visível, encontrar as condições para elaborar um discurso próprio sobre a realidade. Isso já aparece em O Espelho, e desde o primeiro plano.

Mas é na quebra da diegese que o filme realiza lá pelo seu meio que tomamos consciência de toda a dimensão do projeto: romper as amarras da representação, fazer do filmado uma sobre-realidade (um sur-realismo), uma ultra-realidade, fazer de todo documentário uma ficção. No meio do filme, quando a menina chora em frente ao ônibus, a representação se parte (o espelho do título do filme é exatamente o espelho da representação) e a menina decide, em frente à câmara que não vai mais filmar. A partir daí, passamos a ver toda a equipe de filmagem, que decide, então, por continuar filmando a sua ida para casa.

A casa real fica perto de outra praça, o nome da menina é outro, mas a situação é idêntica. Trata-se, ainda, de fazer com que uma menina que não sabe chegar em casa consiga por seus próprios méritos achar o caminho. É esse o toque de genialidade de Panahi: por mais que a imagem seja arbitrária, construída, a questão é sempre de acreditar nessa construção, de utilizar a construção para sexualizar um discurso, jamais para dessexualizá-lo (como vem fazendo o cinema referencial americano — o Big Lebowski dos Coen, por exemplo — ou o sempre maquiado cinema de Peter Greenaway). O arbitrário da imagem jamais faz com que ela perca a sua força; ao contrário, é só elevada ao seu real grau de arbitrariedade, ao seu caráter provisório que ela pode verdadeiramente assumir seu caráter de fabulação, de criação de mundos, de população de signos.

Em sua ida para casa, Jafar Panahi pratica um quase inventário de todas as situações possíveis entre som, imagem e personagem. Ora a câmara se perde da personagem e só temos dela o som; ora é o som que falha e vemos o filme em silêncio; ora temos o som perfeito, mas ele está deslocado de lugar e não mais capta o som que está rodeando a menina. O virtuosismo é complicado, sabemos. Ele pode criar gênios e monstros, obras cheias (Ruiz, Ripstein) ou absolutamente vazias. Mas Panahi sabe como utilizar expressivamente o material de que dispõe. Aliás, faz beleza do precário, é virtuoso com o precário, mas jamais a sua virtuosidade faz um único plano, uma única seqüência cair no vazio plácido dos joguetes de linguagem.

Os experimentos aqui têm um objetivo muito claro: fazer  uma passagem, criar a responsabilidade. Se isso acontece no plano da história, do conteúdo, acontece igualmente na história. O espelho da realidade é partido, e quando vemos um filme não mais vemos a realidade, vemos a criação, um relato. Se ao final do filme a menina consegue realizar seu feito (mesmo que de forma obtusa, porque na verdade ela vai de uma escola falsa à escola verdadeira), no plano do espectador o filme realiza a mesma operação. Olhar para a tela deve manter alguma relação de participação com o filme, o filme tem que se dar nesse entre-dois que é a experiência de entrar em contato com um filme. Romper o espelho da representação é exigir uma responsabilidade do espectador, a mesma que se exige quando uma menina tem que ir para casa. A realização do filme implica a realização de alguma coisa com o espectador, o filme estabelece essa intimidade de maneira coesa e estrita. É mais que um artifício brechtiano. Ou melhor, é um ultra-artifício brechtiano: a imagem de O Espelho tem o direito de representar, ela garante esse direito ao mostrar as cartas ao espectador, colocar ele sempre a par do estatuto da imagem.

O Espelho é muito devedor do cinema de Abbas Kiarostami, argumentista do primeiro filme de Panahi. Aliás, a propósito dessa aproximação, é possível traçar dois tipos de filmar, duas escolas muito diferentes no cinema iraniano. Uma, representada por Mohsen Makhmalbaf (Gabbeh, O Silêncio) e Majid Majidi (Filhos do Paraíso), que tem pretensões de filmar a realidade tal como é, num arroubo de volutarismo apressado (mas que não deixa de apresentar beleza em certos momentos); e uma outra escola, cujo pai é Kiarostami, que acredita na verdade da mentira, que acredita que a ficção é a verdade e que o documentário é a mentira, cujos representantes, além das obras-primas de Kiarostami, Vida e Nada Mais e Através das Oliveiras, seriam esse segundo filme de Panahi, A Maçã de Samira Makhmalbaf e dois de Makhmalbaf, Salve o Cinema e Um Instante de Inocência. Essa escola realmente entendeu o que Godard quis dizer quando falou que o cinema é a verdade 24 vezes por segundo.

Ruy Gardnier