por Bernardo Oliveira
Antes da pena pousar o papel, por um tempo breve, retilíneo, subitamente sinuoso, senti-me obrigado a calar a ânsia de clareza. Penso que, quando escrevemos com o intuito de atingir outras pessoas, sobretudo a respeito de um assunto tão vasto, devemos buscar acordos, relevâncias, conjunções,... dialogar com o objeto e, por conseguinte, com o auditor. "O papel da crítica", diz o outro, buscando pontos realmente necessários, essenciais. Pois bem, fica para a próxima. Finou-se o esteta do caos, o cavalheiro meta-estilístico, mordaz e autoritário, Kubrick.
Inocentes pirulito, estrondoso badalo juvenil na mente de um coroa empolgado; cavaleiros yankee, navegando o apocalíptico micro-espaço, do red button à destruição; dentes de escravos rebeldes que rompem tendões e estilhaçam corpos; bandos cibernéticos a serviço do fim, vagando por um mundo asséptico; um macaco que vira homem, um homem que vira máquina, enfim, atavismo e violência.
O imaginário de Kubrick passeava por imagens bizarras, imagens ritmadas no compasso do desespero; mas, não raro, subtraíamos o estrondo, privilegiando o absurdo, a sensação de que algo não deveria estar acontecendo. O som destas imagens eram a de um batimento cardíaco, afobado, intrínseco. A fúria das imagens kubrickianas não portavam os paroxismos de um Peckinpah, outro trovão. Um fio de estranheza perpassava seus filmes e nos induzia aos mais fecundos questionamentos sobre o homem e sua obscura natureza. Mas não qualquer homem: Kubrick, embora não tão explícito, era um cineasta do político. E política aqui deve ser entendida como a produção dos tipos de relações entre seres humanos. As cidades eram assunto para ele, assim como todo o campo de imanência referente ao "bicho" ocidental. Ele observava com sua lente o caos gerado pela incomunicabilidade, o atavismo da violência, a violência do Estado, a própria formação do Estado e o caráter daqueles que o formaram, sem panfletagem ou esquerdofrenias, mas com a mão firme do iconoclasta, ácido e mordaz.
Por essas e outras Kubrick arregimentou, não uma coleção de filmes, mas uma coleção de imagens antológicas e fundamentais. E uma existência, diria,... fecunda. E apaixonada. Kubrick amava essas imagens e o direito de "proferi-las". Tanto que já pululam comentários sobre as condições impostas pela Warner para Eyes wide shut, seu último filme. Teriam abreviado a vida deste verdadeiro gênio, que lutou até o fim pelas chamadas "condições de produção", para poder dizer com todas as letras o que de fato lhe era imposto: poder e violência.