Metalinguagem a Serviço da Pólis

por Marlos Salustiano

Filme notável este "Pânico 2". Wes Craven mais uma vez demonstra perícia e virtuosismo no trato do jogo metanarrativo, transformando o que poderia ter sido apenas mais um popcorn movie numa refinada, sarcástica e muitíssimo bem urdida crítica ao funcionamento da industria cultural.

Ele não só dá continuidade ao exercício metalingüístico (estrategicamente aplicado para manipular com rédeas firmes todo o acúmulo de clichês legado pelo cinema-de-suspense), como sobretudo introduz elementos novos à sua crítica. Fazendo desta seqüência muito mais do que uma exibição de sua mestria intelectual no trato com as convenções do gênero, Craven nos apresenta uma fábula moral, edificante (tal qual Platão reivindicava de seus poetas na República), engajada (sem os ranços, obviedades e restrições de uma sub-estética politicamente correta) e ao mesmo tempo uma psicanálise da perda.

panico2-2.jpg (4046 bytes)

CINEMA REIFICADO X TEATRO
Ao caracterizar Sidney como aspirante a atriz, Craven não apenas determina o território onde a heroína terá de confrontar seus fantasmas: inicia também uma reflexão sobre duas práticas artísticas e, respectivamente, seus prováveis efeitos. A saber: Teatro e Cinema, catarse e alienação. Em sua formidável abertura, o filme representa com clareza eficiente o efeito funesto desse Cinema que foi prevaricado pela própria indústria que o perpetua.

Prevaricado porque sua função moral e moralizante é recalcada em detrimento de uma reprodutibilidade técnica que reifica, fetichiza e "distribui", sem nenhum sentimento de culpa ou sequer mínima pesagem moral (frieza aliás típica das estruturas psicóticas), o espólio de suas perdas trágicas (no caso, as vítimas dos serial killers, unabombers e misantropos afins). É no sentido contrário a esta máquina psicótica que Craven se encaminha quando nos propõe mais do que uma recontagem dos corpos: quer pesá-los outra vez, quer recuperar a dignidade que lhes foi roubada e a dor do luto que lhes foi negado. Enfim, quer revalorizar essa fração de masoquismo que nossa civilização neurótica chama de responsabilidade; quer restituí-la em nós e ao mesmo tempo fazer germinar outra vez no Cinema aquilo que ele tem de Teatro. Sem cair, é claro, numa caduquice programática e esquerdofrênica.

NASCIMENTO DA MÁQUINA ESTÓICA
Não é à toa que tudo desemboca na boca de cena (no pun intended). Como nas tragédias clássicas, o rito de passagem de Sidney pretende ser o nosso rito de passagem. Enquanto seus colegas se aplicam num cálculo de clichês, protegendo-a e tentando adivinhar quem será a próxima vítima, ela está alienada, chorosa e entretida com suas cicatrizes (é o legado do primeiro filme). Mas a Perda a cerca. A Perda joga com ela um jogo perverso. A Perda é o único vilão do filme (o serial killer encapuzado é apenas um mero agente). E, como todo vilão trágico, é por excelência um pharmakéus (mágico/envenenador/curativo): veio dar uma lição amarga.

Essa é a natureza do conflito. E essa é a natureza da lição: novas perdas trágicas forçam Sidney a encarar a falência dos cálculos paranóicos, o fiasco da contabilidade precavida (precaussiva) que procurava prever os próximos passos do vilão. É forçoso reconhecer a inutilidade da fuga. Não há saída. E nem o confronto direto é uma garantia de fechamento, de conclusão, embora seja a forma mais digna (essa palavra com certeza deixa os pós-moderninhos enojados) de lidar com o curso dos fatos.

Pois não se trata mais de viver passivamente, protegida sob os direitos das pessoas enlutadas. Nem tampouco de uma apologia ao luto. Muito menos de uma luta óbvia, embora sua estrutura seja a mesma desde que o homem se entende por sujeito desejante (afinal é o desejo mesmo que nos faz fiéis soldados de nossas próprias fantasias).

Trata-se isto sim de se reduzir as possibilidades de luto, ou seja, lutar, porque nenhum soldado tem tempo ou espaço para o luto durante uma guerra.

E esse soldado/sujeito-desejante só será uma máquina estóica quando, como Sidney, confrontar-se com seu Urbild (Cassandra), abandonando a cômoda condição de vítima e encarando que plausibilidade e previsibilidade não passam de fantasias (mais exatamente: peças da engrenagem paranóica) que se atualizam na coincidente e aleatória conivência do real.

Não só o aparentemente inocente pode ser culpado (ou o aparentemente culpado ser inocente) como sobretudo o aparentemente inocente pode ser de fato inocente (e o aparentemente culpado, culpado). Para dar conta dessa evidência capciosa, é preciso correr o risco de uma reatividade sumária (fascista), sem garantia de "undo".

Esta aporese é o elemento constituinte do psiquismo de todo herói: ele sempre tomará decisões dentro de um topos nebuloso, de tal forma que sua ação tanto poderá ser desbravadoramente adequada e brilhantemente intuitiva quanto o produto vergonhoso e equivocado de um narcisismo autoconfiante demais, inconseqüente demais.

É nessa aporese que Sidney matura ao ocasionar, por força de seu medo, mais uma morte (mais um inocente literalmente crucificado): desta vez seu novo namorado.

Mas quem saberia dizer a qualquer um de nós quando parar e quando avançar?

Neste final-de-século só nos resta, se queremos dar uma resposta moral ao estado de coisas, nos transformarmos em "bons" psicóticos (à exemplo do bom ladrão, crucificado à direita de Cristo).

Só nos resta dar o tiro paranóico-preventivo na testa do monstro, porque ele pode se levantar mais uma vez.

panico2-3.jpg (5927 bytes)

UMA NOVA BANDEIRA: ABARIA
Para quem esperava uma análise da "materialidade" fílmica, do "específico" fílmico, não pretendo dar nenhuma espécie de satisfação. Até porque este filme é o exemplo triunfante de uma linguagem poderosamente urdida e capaz de reconciliar, como só nas obras dos artistas maduros, forma e conteúdo. Não é nem um pouco difícil perceber o quão apropriadamente o jogo metanarrativo abastece, sustenta e auxilia o desenvolvimento da trama, iluminando questões muito mais relevantes.

Craven presta, com louvor, à seu Urbild/Totem (Hitchcock) a homenagem que o apenas imaturo e equivocado Gus van Sant teve a pretensão de prestar. Sobretudo inverte o foco das narrativas de suspense quando aponta os spots sobre Sidney (nosso duplo fílmico) e seu amadurecimento.

Nadando contra a corrente que, de Norman Bates a Hannibal Lecter, só fez fetichizar e glamourizar a performance excêntrica dos assassinos seriais, Craven nos convida a refletir e a dar uma resposta.

Sem garantia de happy ending. Mas com possibilidade de ABARIA.