Godard Faz Mais de Cem Anos

por Rafael Viegas

Archè gàr kaì theòs ev anthrópois hidryménê sózei pánta...
(Platão, Leis, VI, 775 e)

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A Godard não interessa o cinema. Falar, decorrência direta da sua própria política e que para ele tornou-se a própria ascese, é agora mais importante. Antes de ter-se metido nisso, era um homem comum. Agora, além de um nome, tem uma ocupação: é uma lenda. Como os velhos helenos, poetiza e não explica, saboreia a atitude trágica sem pecado. Atrás da mão de mestre inocente a cabeça curva do arco-íris.

Izesuq Kilistoq: A nova tecnologia não desenvolveu ainda um meio espiritual que vá além do kitsch. Ela comanda o materialismo histórico, crucificou o homem novamente – de maneira mais sólida, mais necessária. O cinema parece ser a saída? Onde se pode encontrar as terras fora dessa “epistemologia”?

Godard: A l’époque, il y avait aux Cahiers l’idée du “beau langage” qui venait du XVIIIe. Bien que moi, curieusement j’ai commencé par les modernes, j’ai lu Céline avant les classiques. Mais pour nous, écrire aux Cahiers c’était une activité littéraire à part entière.

Izesuq Kilistoq: O cinema então não faz aniversário? Penso se realmente faz sentido descrever as etapas do cinema...

Godard: Regardez ce que sont devenus les festivals. La première fois où je suis allé à Cannes, avec Jacques Rozier, c’était vraiment une grand joie, on pouvait aller au cinéma dans le festival. Aujourd’hui c’est impossible sauf si on est très programmé. A l’époque Nicholson amenait les premières bobines du film dont il était l’acteur, imaginez un acteur d’aujourd’hui amenant dans ses valises les bobines de son film!

Izesuq Kilistoq: O Sr. então é um batalhador, quer dizer, o Sr. ignora as angústias do Terceiro Mundo (posso enumerá-las todas, se o Sr. quiser) mas admite que o cinema é ridículo (não verdadeiro, quero dizer) embora possível – enquanto Orson Welles esteve num país como o Brasil e filmou tudo traído pelo capital estrangeiro.

Godard: Bien sûr, et c’est là le drame. On veut faire des films différents, et on doit les faire avec les gens qu’on méprise et qu’on n’a pas envie de voir, au lieu de les faire avec ceux qu’on aime et qu’on voit.

Izesuq Kilistoq: Não só, portanto, o cinema é uma minoria, como é uma minoria acessível ao indivíduo.

Godard: Oui, bien sûr. Bertolucci ne fait pas de cinéma américain, Resnais non plus, ni Straub, Rossellini ou Jerry Lewis. Mais cet autre cinéma, bon ou mauvais, répresente 1/10.000 ou même 1/100.000 de ce qui se fait.

Izesuq Kilistoq: O que torna o mundo ainda mais secreto e sacrossanto.

Godard: L’Amérique vue par un français sera la première chanson de geste américaine?

Izesuq Kilistoq: Quando eu era moço, na Alemanha, as pessoas diziam que o mundo era judeu. Mas acho que o mundo ainda pertence ao velho capital expropriado da Ásia, da África, da América do Sul. O Sr. é agora velho, o cinema também – e a julgar pelo que defendeu em Histoire du Cinéma, o Sr. e o Cinema têm ambos mais de cento e poucos anos. Eu noto que os grandes homens trabalham o passado e é nele que sentem a justiça e a grande economia da existência. Num certo sentido, é a zona da velha eucaristia, preparação inevitável da morte: totalidade metafísica, digamos, terreno do capitalismo. Mas todos nós temos novos nomes. Curiosamente, sua autobiografia se chama JLG/JLG. Isto define uma época, uma totalidade, tanto quanto define uma existência pessoal, assim como o talento. Não é à toa que não temos talento. É uma explosão reservada.

Godard: L’image est très liée à la justice. Parce que l’image c’est une preuve. Le cinéma donne à chaque fois la preuve matérielle de ce qui se passe. Je crois que si les films étaient bons, la justice ne pourrait être rendue de la même manière. L’institution judiciaire est entièrement dominée par le texte. Pour moi, le cinéma c’est Eurydice. Eurydice dit à Orphée: “Ne te retournes pas”. Et Orphée se retourne. Orphée c’est la littérature qui fait mourir Eurydice. Et le reste de sa vie, il fait du pognon en publiant un livre sur la mort d’Eurydice. Pour moi, les images c’est la vie et les textes c’est la mort. Il faut les deux: je ne suis pas contre la mort. Mais je suis pas pour la mort de la vie à ce point-là, sourtout pendant le temps où elle doit être vécue. L’époque actuelle, c’est le triomphe absolu de la mort.

Izesuq Kilistoq: “Deste modo, só quando uma coisa é tomada do exterior como alimento adquire a propriedade de veneno, que antes era em si e para si mesmo uma coisa natural”.

Godard: A la télévision, on a inventé le téléspectateur avant les programmes. Des gens comme Welles, comme Pialat, comme moi, nous sommes des naufragés.

Izesuq Kilistoq: Se o Terceiro Mundo tivesse morrido mesmo não haveria a guerra, não se abateria sobre nós a miséria, não nos expulsariam da Europa. É preciso que a guerra exista, que nós conheçamos a sua existência. Ela é feita para nós, para o nosso deleite. O papel do escravo ainda é fundamental na economia da coisa, apesar de banido das essências, da universalidade do humanismo. Para nós, mas qual é mesmo a nossa culpa, a culpa da nossa incapacidade? Quero dizer que eu (posso dizer, eu, o terceiro mundo?) não entendo nada de seus filmes, cheios de citações bárbaras, incompreensíveis, não é mesmo? O que me interessa neles é não a “técnica”, mas o balbuciar de algo em alerta ainda, certa atividade do virtuose, que não é a atividade em si mas uma de suas partes, e que procuro em tudo aquilo tomado por genial nesta terra, que usufruo enfim num lance de gozo muito mais do que no de uma reflexão total. Acumulo os dados dessa “estética” de pontos – em última instância ela me lança novamente sobre o abismo: o cinema americano. Posso entender esse negócio de naufrágio mas não a derrota – porque nós já estamos adaptados ao medo e ao terror da cultura universal. Na verdade, eu entendo mas acho tudo muito engraçado. Será possível um campo do absurdo – e a troco do quê? Como se não desconfiássemos que tudo isso, as histórias, as formas de controle do passado, significam apenas o medo e o terror da grande História. A vida deve se ocultar por detrás disto porque ela importa mais do que a morte – e a história é a linguagem da morte. Há um odor imperceptível de morte nesses jornais, no cheiro de benzeno, no reumatismo dos digitadores, nas acusações feitas aos outros, nos registros dos fatos dos outros. Devemos, nós também, morrer para então encontrar os verdadeiros valores. A guerra não significa justamente este ponto?: o Financial Times fala a nosso respeito, na medida que é impossível falarmos, em si e para si, do Financial Times. Para onde vai o cinema do Terceiro Mundo?

Gepeto: J’attends la fin du cinéma avec optimisme. Le muet c’était la découverte du montage. Le cinéma n’est pas de la photo en mouvement mais trois photos à juger, à comparer. Je vais démontrer comme un scientifique: Eisenstein a fait ça et ça, et ça montre ça. Avec le cinéma parlant, il fallait cesser de voir, de penser, d’imaginer. Avec le muet, les gens ouvraient les yeux, ensemble. Tout le monde est à égalité devant l’image: le cinéma, ses yeux, à notre hauteur, moins tabous que le sexe, mais à recouvrir, puissants, à controler. Tous les grands du parlant sont muets. On prendra donc des exemples du muet et ce que c’est devenu à l’époque du parlant.