Godard Anos 90 Nove Zero:
do cinema das histórias às
história(s) do cinema

por Ruy Gardnier

Em 1988 Godard começa a fazer o que talvez seja sua obra mais importante, História(s) do Cinema. A coisa transborda para todo o seu trabalho posterior, a ponto de vermos que inclusive em seus filmes de ficção tudo vai gradualmente assumindo um papel, uma função propriamente histórica, de comentário sobre a História, até chegar no rosselliniano Para Sempre Mozart, em que os personagens deixam de ser tudo que sempre foram em seu cinema (rostos, falas, bocas, posturas, luzes) para serem objetos históricos, como n'A Tomada de Poder por Luís XIV. Mas o que é fazer a história do cinema? O que é fazer a sua história do cinema? É o filme apenas mais uma história, a ser catalogada ao lado dos volumes de Georges Sadoul e de outros historiadores? Ou do lado das histórias cinematográficas, como a Viagem Pessoal de Scorsese ou o Panorama do Cinema Brasileiro de Jurandyr Passos Noronha?

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Montagem feita a partir da edição
de
Histoire du Cinéma, de
Georges Sadoul (Flammarion, 1962)

História(s) do Cinema é único. Trabalho de uma monumentalidade digna do radicalismo de James Joyce em Finnegans' Wake, uma das poucas comparações artísticas aplicáveis. Também podemos aplicar As Palavras e as Coisas, livro de Michel Foucault, igualmente polêmico à época de seu lançamento por sua nova interpretação da História. O fato é que História(s) é obra inqualificável, meio caminho entre arte e ciência, que lida com os dados à maneira de Verdades e Mentiras, último filme de Orson Welles e como que prenunciador dessas História(s). "Para mim a arte é ciência, ou a ciência é arte.", diz Godard em sua conversa com Serge Daney, presente no episódio Seul le Cinéma. E é nessa colcha de retalhos dos saberes — históricos, artísticos, filosóficos — que são construídas as História(s).

Depois da difusão da primeira série, 1A e 1B, em 1989, Godard faz Nouvelle Vague e Alemanha Ano 90 Novo Zero. Se o primeiro exprimia uma falta de rumo da ficção dentro de sua obra — o arremedo de história parece só conduzir a si mesmo, numa tautologia ausente de todo resto de sua obra —, o segundo é claramente feito à luz da História. De uma encomenda para fazer um filme sobre a solidão, ele diz: "Quando me propuseram fazer um filme sobre o tema da solidão, disse à produtora que não gostaria de tratar de uma solidão individual, seja de um anônimo, de um apaixonado, de um drogado ou até de um chefe de Estado ou de uma estrela do tênis. Que eu preferia a idéia de solidão de um povo ou de uma nação."

Daí em diante o tema torna-se cada vez mais claro, apenas com a exceção estudada de Infelizmente para Mim. JLG/JLG — Auto-Retrato de Dezembro é seu acerto de contas com o mundo, onde ele afirma cabalmente sua posição de exceção contra a regra, a arte contra a cultura. Dezembro já é tempo, e tempo é História. Daí a citação pouco entendida quando vemos Sein und Zeit escrito em seu caderno de anotações. Ser e Tempo, livro de Martin Heidegger. Mas se engana quem acha que Godard vai fazer sua História de um ponto de vista fenomenológico. Não a História interiorizada e complexa de uma subjetiviidade ou de um povo (o que acaba dando no mesmo). Os fenomenólogos não costumam ir ao cinema. Seu trabalho está muito mais perto da Nova História, em todo caso de um predecessor desta, Fernand Braudel. E, de fato, Braudel é citado a respeito das História(s): "Fernand Braudel (...) diz que há duas histórias: uma história próxima, que corre a passos precipitados (...) e uma história longínqua que nos acompanha a passos lentos". A história de Godard, é ele quem aproxima o tempo todo, citando Braudel e Foucault, é construtiva: cineasta, ele não tem outra opção (nem quer, nem deve) que a da montagem.

E é ela que vai ser exercitada no grande prisma histórico que é Para Sempre Mozart. Uma miríade de personagens procura sua História, à maneira de Godard, que procura a sua. "Podemos fazer tudo, exceto a história do que fazemos." E é por isso que Para Sempre Mozart surge como peça estranha, de uma beleza que não sabemos se é ficcional, didática, documental ou poética (uma poética da ausência). O cinema desse filme tenta buscar seu passado: é preciso chamar à presença Rastros de Ódio para que se filme diretamente, é preciso que se faça um encontro cara-a-cara com sua história: os jovens vão estabanadamente observar a sua, interpretando Musset em Sarajevo; é preciso fazer com que a atriz diga o seu sim, um sim verdadeiro, fora de campo — tarefa do diretor, trazer um sim para o mundo.

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História(s) do Cinema, de Jean-Luc Godard

Godard foi de todos os cineastas o que mais esperou do cinema, e sem dúvida o que mais dependeu dele. Foi o único dos autores monstruosos que conseguiu sobreviver a ele (Glauber Rocha, R.W.Fassbinder e Jean Vigo morreram de cinema...). Mergulho sem fim, que tinha que culminar em sua História. Godard é o único sobrevivente, não há enganos. O único sobrevivente de uma tentativa moderna de tomar o mundo de assalto com sua arte, antes de ser soterrado pela nova economia dos anos 80 (e talvez por isso Godard tenha feito nesses anos sua obra menos histórica...). Seus anos 90 são cheios de autoprocura: é aí que entram Nouvelle Vague e Infelizmente para Mim, mas também JLG/JLG e 2X50 Anos de Cinema Francês. Tudo que Godard esperava do cinema está nesse filme, onde Godard percebe que seu projeto perdeu... o mundo conhece Schwarzenneger e Pulp Fiction, mas nunca ouviu falar em Michelle Morgan ou Cais das Sombras. O cinema foi esquecido, e é por isso que precisamos lembrar dele no centenário. Mas é bom que lembremos: o centenário é da primeira sessão paga de cinema. Logo, o centenário é da cultura, não da arte.

É contra tudo isso que aparecem as História(s) do Cinema em 1998. Godard declara FIM ao cinema (pela segunda vez, a primeira foi em Week-End) e resolve contar sua História, a história de um sonho belo: "Se/um homem/atravessasse/o paraíso/em sonho/e recebesse uma flor/como prova/de sua passagem/e, ao acordar,/ele encontrasse/essa flor/em suas mãos/dizer o quê/então/eu era/esse homem" é o que ouvimos depois de 265 minutos de história do cinema. Mais que uma simples citação de Borges, o dito torna-se cabalmente godardiano: o cinema foi meu sonho, mas a flor é real. Que mais bela declaração de amor já houve em 103 anos de cinema? As História(s) do Cinema levam às lágrimas, seja pela démarche enlouquecida de Godard no meio de seus amores (Rossellini, Hitchcock, Fritz lang) seja pela evocação sempre breve e exata dos sonhos coletivos que o cinema foi: Era Notte in Roma, Paisà, Rastros de Ódio, O Diabo Feito Mulher, Os Incompreendidos, além de seus próprios filmes, sobretudo uma imagem de Week-End em que os dois personagens reaparecem saindo da fumaça dos carros que queimam. "A arte nasce do que ela queima", já dizia ao pedir a Langlois que queimasse a Cinemateca Francesa. Pois é o que Godard realiza em suas História(s): queima toda História do Cinema para poder transformá-la em flor. É nas História(s) do Cinema que Godard se declara inimigo fugidio de nossos tempos, pois eles estão empenhados em organizar sistematicamente o tempo na unificação do instante. Ao contrário, trata-se com essas História(s) de escutar o tempo que passa*.

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Montagem, Meu Belo Anseio, Uma Nova Onda e
A Responsta das Trevas: três episódios das História(s)

Vamos às lágrimas com as História(s). Mas nada de lágrimas de resignação ou de nostalgia. Lágrimas violentas de protestante, de defensor da flor contra o tempo que tem por função fustigá-la, de quem defende seu modo próprio de viver contra todas as sujeições da vida contemporânea. "Nada é mais contrário à imagem do ser amado do que a imagem do estado", a voz é do próprio Godard. Em sua parte 4B Godard presta contas com toda a História do século XX: como artista do século, ele assume sua posição e analisa seu presente. História(s) do Cinema é o único filme politico dos anos 90. História de nossas afecções, ode à nossa liberdade, resenha dos tempos de hoje, e cinema como arte de resistência. Obra monumental que religa o homem à sua história, obra de pedagogo do cinema. Godard, meu belo anseio.

* Palavras que aparecem no final da parte 4B.