Filhos do Paraíso
(Children Of Heaven),
de Majid Majidi (Irã, 1998)
O cinema iraniano já não precisa estar dando provas de sua relevância, pois é um cinema que já mostrou sua regularidade de produção (aqui no Brasil mais na Mostra de São Paulo que no resto do país) e a sua quantidade de autores. Há diretores profundos com Kiarostami, irrequietos como Mohsen Makhmalbaf, com uma história de belos filmes como Dariush Mehrjui, além de uma nova geração que permite a um Farhad Mehranfar ousar um lirismo sem fronteiras em seus dois filmes Aviões de Papel e A Árvore da Vida. No entanto, uma vertente deste cinema, talvez a primeira a ser revelada, ainda não dizia a que vinha, na minha modesta opinião. O pseudo-neo-realismo consagrado no Balão Branco de Jafar Panahi, mas repetido ad eternum (como em A Bota e A Chave, só exibidos na Mostra) trazia elementos de interesse mas sem resolver cinematograficamente ou tematicamente todas as expectativas criadas. Pois é Filhos do Paraíso que consegue este feito. O início parece ser retirado do "Grande Manual Iraniano de Começar uma História": Menino perde um par de sapatos e daí começa uma busca que o levará a confrontar-se com sua família e o seu país. Mas Majid Majidi consegue elevar o filme do viés comum ao mesclar alguns expedientes do cinema americano clássico com o seu neo-realismo, e aumentando o alcance do seu painel de temas. Este aliás é o terceiro longa de Majidi, todos desta década, comprovando a frequência dos cineastas de lá, que não chega até nós no circuitão, mas que Leon Cakoff tem mostrado com insistência e paixão. Partindo do seu fiapo de trama quase clichê dentro do cinema iraniano, o que o diretor consegue é dar um tratamento cinematográfico mais sofisticado ao que antes era só um arremedo sem profundidade de neo-realismo. Há os que digam que os cineastas iranianos usam as crianças e as tramas ingênuas e pouco posicionadas pela falta de liberdade para ir mais fundo e direto em críticas sociais. Quem já viu a obra de Makhmalbaf, Kiarostami e Mehrjui sabe que isso é mentira pois eles mergulham fundo e sutilmente, mas sem ingenuidade na crítica ao regime. Da mesma forma, Majidi consegue com este filme um mergulho no qual o enfoque quase documental das mazelas iranianas sai do simples mostrar e toma posições. Pela primeira vez, por exemplo, vemos a Teerã rica, as classes ricas. E ao mostrá-las fica ainda mais pungente a crítica social pois cria a noção das duas realidades no Irã. Este efeito supera muito em complexidade o simples retrato da miséria. Majidi mostra as relações inumanas entre classes com um recurso tão simples quanto genial: o interfone. Os ricos não se vêem face a face com os pobres, mas os dispensam de longe. Porém um verdadeiro humanista vê sempre uma saída, e a de Majidi está nas crianças, que forçam o contato entre classes. Além desta crítica social, ao mostrar as relações de autoridade na escola e na mesquita, ao mostrar a influência da propaganda danosa via TV no imaginário infantil criando uma divisão inter-classes por valores como um sapato mais limpo, resumindo ao mostrar um painel mais abrangente, Majidi faz um retrato mais completo do que é a vida no Irã. Por exemplo, quando o pai diz ao menino "Você já não é mais criança, tem nove anos!", o diretor passa toda a situação das crianças pobres prematuramente adultas (igual no Irã ou no Brasil). Esteticamente seu filme também é mais rico. A montagem das cenas em que os meninos correm pelas ruas para não se atrasar para a escola, por exemplo, é genial pois cria um efeito de angústia e drama muito mais profundo. As cenas no bairro rico também são muito bem filmadas. Mas, destaco duas sequências: a final, com os pés machucados do menino triste mergulhados na pequena fonte, contratado com a (desconhecida para ele) solução que virá através do pai, e a melhor do filme, a comunicação dos irmãos através dos cadernos para fugir do controle da autoridade paterna, um primor de edição de som, montagem, e humanidade. Estética e conteúdo, uma junção poderosa, sempre. Compreender isso é o que faz de "Filhos do Paraíso" um filme especial. Com uma ressalva: em dois fatores o diretor se equivoca um pouco na apreensão "hollywoodiana" da história. O excesso de choro dos personagens que tira a força dos momentos mais dramáticos; e a enganada cena da corrida encenada como uma verdadeira Carruagens de Fogo, cheia de câmeras lentas e redenções, clichês e tempos mortos. Mas, nada que retire a força do painel geral que ele pinta. Eduardo Valente