Em Busca do Godard Militante

por Bernardo Oliveira

Qualquer interpretação que busque identificar determinada "fase" do cinema de JLG com posicionamentos políticos, será mera especulação. Ou um esforço para enquadrar o "cinema do ferro velho" e da delicadeza em feudos acadêmicos, muito úteis. Não se trata disso.

O político sempre esteve em JLG. A busca e identificação de um momento mais político (por exemplo, Grupo Dziga Vertov) é equivocada por que pressupõe uma fase menos política. Sempre que nos esforçarmos para cercar seus filmes e determinar-lhes lugares fixos, incorreremos neste rotundo erro: ímpetos classificatórios. Estas classificações tornam-se possíveis quando falamos de circunstâncias. Por exemplo, "Godard é maoísta porque compareceu às passeatas de 68 cercado de amigos maoístas". Mas não servem para falar dos filmes. Portanto, dialoguemos com este erro para mostrar que se trata de mera utilidade.

lutasnaitalia.jpg (47013 bytes)
Lutas na Itália, realização do Grupo Dziga Vertov

Ao tornar-se kinok*, JLG não realçou a militância política (óbvia associação pois Dziga era "russo", "revolucionário", etc.) mas a militância política, as querelas entre cultura e arte, o amor, o conhecimento (não é disto que se trata Camera œil?), o cotidiano nas cidades em "fase de industrialização", o cinema dessas cidades, a técnica, a forma,... Vent d'est, assinado pelo Grupo Dziga Vertov, é sobretudo um ensaio poético, porque JLG é poeta. Tais maquinações para produzir um corpus godardianus, que atua em fases, serve somente para vincular à dificuldade suscitada pelo nome de JLG, mais dificuldades. Torna, portanto, um esforço colossal penetrar na obra deste cartógrafo de coisas, sentidos, afetos e movimentos quando buscamos somente o drama. Godard é o cineasta da soma, nunca da exclusão "politizada". Logo, interpretá-lo a partir da idéia de fases, grosso modo, cujas cores se alternariam "mais forte aqui, mais pardo ali", é errôneo.

Ora, Auto retrato de dezembro (94), localizado como um filme obscuro, reflexivo e até, "deprimido"...besteira! É um dos mais belos filmes de JLG. Não é o canto do cisne, como cantaram em verso e prosa pelas publicações do mundo inteiro. Um jornal chegou a publicar que JLG estava sozinho e que havia chegado seu fim. Ora, mas tudo ali possui uma justificativa em estreita relação com a petulância (logo, com a alegria) do autor. É uma constatação infeliz: não há espaço para Godard no mundo globalizado de responsabilidades e "crescimento econômico". Mas ele ri. Cita Alexis de Tocqueville para criticar o neo-liberalismo; utiliza os planos fixos como manifesto pela reabilitação da imagem fílmica; nos diálogos finais, fala de amor (como os sertanejos) "para que haja amor sobre a terra", numa cena que entra em qualquer antologia da década. Portanto, ainda que cercado de lirismo, Godard é político. Faz política a cada cena porque é uma cara questão no seu mapa-mundi. A montagem é uma resposta, um comovente ato de guerra pelo cinema. O ponto crítico é o de tratarmos um auto retrato. Assim sendo, podemos até encontrar uma foto maoísta ou, quiçá, marxista. Mas não importa. JLG busca uma política, mas uma política do indivíduo (JLG par JLG), uma política da banalidade (Sauve Qui peut, la vie e Passion), uma política da utilidade (Une femme est une femme e Le petit soldat), uma política do ataque e da experimentação (Tout va bien e Weekend), uma política do amor e uma política do possível e do impossível, ou melhor, uma política da imaginação ("o cinema é arte de imaginar os objetos no espaço", diz Vertov).

Uma fórmula godardiana objetiva é "não uma imagem justa, justo uma imagem". Uma fórmula subjetiva é "não à interpretação, sim à experimentação". Porque experimentar é fugir de códigos pré-estabelecidos, isto é, as expressões do mundo. Godard nos mostra que o importante é imprimir o mundo. Expressar é repetir palavras de ordem. "Todos se expressam". Imprimir pressupõe uma carga de "tinta espiritual", um olhar para o mundo em dois tempos: um para negá-lo, outro para reinventá-lo. Por isso é que não entendemos um JLG mao. O que seria um JLG marxista (estranha mutação!). Ele sempre experimentou, tentou Hollywood... Mas nunca sentou acampamento em ideologia nenhuma. Pois isto seria interpretar a história e adotar uma posição incorruptível. "Me aliarei aqui porque lá não concordo, é pior, não tem dinheiro..."

ventodoleste2.jpg (30285 bytes)
Vent d'Est, do Grupo Dziga Vertov

Tout va bien é um filme crucial nesta perspectiva. Camera œil também. O olhar desatento se impulsiona para identificar nestes dois ensaios, inflexões políticas bem determinadas. Não há. Como um ensaio atípico há uma exposição temática indireta, que circunda o objeto mas nunca o alcança, incitando novas reflexões a seu respeito. E este é o trabalho de JLG, desde sempre: rever o mundo indefinidamente. Rever e imprimir visões de mundo. E também visões do cinema, quando ele não é nem máquina ideológica, nem "filme de arte" (embora um conceito implique no outro).

* Kinok é um termo cunhado por Dziga Vertov, para o manifesto Nós, redigido em 1919 e publicado em 1922. Kino, cine; oko, olho; ok, o designativo russo para uma figura humana masculina. Kinok é o agente ativo que, através da máquina (câmera), elabora novas visões de mundo, livre dos "dilemas psicológicos" do olho humano.