Depois da Polêmica, Uma Justificativa

por Bernardo Oliveira

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Paulo Emílio Salles Gomes

Em razão da boa, porém parcial, aceitação de seu último filme, "Orfeu", Carlos Diegues tomou a palavra no dia 9 de maio para questionar o papel da crítica de cinema no Brasil. Obteve do crítico de cinema do jornal O Globo, Hugo Sukman, a seguinte resposta:

(...) é preciso que a crítica volte a ser totalmente irrelevante no sentido truffautiano do termo, comprometida apenas com o prolongamento do prazer de se ver um filme, numa conversa tríplice entre crítico, realizador e espectador, recheada de informações e pontos de vista estéticos. (...) Só assim poderemos voltar a xingarmo-nos uns aos outros, na maior irresponsabilidade.

A irresponsabilidade a qual Sukman dirige seus comentários faz referência ao modo agressivo com que François Truffaut críticava o conservadorismo do cinema francês da época. Sukman exemplifica:

É esta doce irresponsabilidade que fazia com que o maior crítico impressionista de cinema, François Truffaut, lançasse suas diatribes contra o conservador cinema francês dos anos 50, muitas vezes utilizando artifícios baixos como xingamentos pessoais. A postura rebelde e talentosa gerou a revolução da Nouvelle Vague e, mais importante, um vago sentimento no cinema francês (com respingos no mundo inteiro) de que Hitchcock era mais interessante do que um bolorento diretor que adaptasse um livro de um membro da Academia Francesa (fazendo questão de botar essa informação no crédito)

Com relação à índole violenta de Truffaut, Sukman tem razão. Godard, Rohmer e outros, eram esbravejadores petulantes1. Quem conhece minimamente os primórdios da Nouvelle Vague, sabe que muito destes impropérios eram prontamente acompanhados subjetivamente pela palavra amor. E isto é deveras interessante no movimento: como um estandarte, o amor era enaltecido, liame básico entre o grupo e o cinema. Amor pelo cinema, "antes das mulheres, antes dos carros e do dinheiro". (JLG insiste na idéia num filme de 1994, "para que haja amor sobre terra").

Os jovens "rebeldes", que se estabeleceram acerca do pensamento de Bazin, Sadoul e outros, revelariam sob este estandarte o desejo de ressaltar uma escolha e uma distinção. Uma escolha porque, embora contingente, este amor era bem demarcado, o cinema; as palavras, como dizê-las?; a mise-en-scène, o que é?; qual invenção?; quem é o inventor? (Dreyer? Hitchcock? Carné?). Tais questões tratam, pois, da escolha pelo cinema e o modo de vê-lo e fazê-lo. A questão da distinção traduz-se num belíssimo ensaio de Roland Barthes, "O grau zero da escritura", que embora trate de problemas referentes à literatura, por ora nos cabe como bom exemplo:

Hébert nunca começava um número do "Père Duchêne" sem colocar alguns "foutre" e alguns "bougre". Estas grosserias não significam nada, mas assinalam. O quê? Toda uma situação revolucionária. Eis, pois, o exemplo de uma escritura cuja função não é mais comunicar ou exprimir apenas, mas impor um além da linguagem que é, ao mesmo tempo, a história e o partido que nela se toma.

Para os jovens franceses, o desejo de perpetrar uma visão irreverente do cinema, para além das produções e das críticas da época, se dava como uma espécie de manutenção. Não estamos com isso, de modo algum, minimizando a importância das análises críticas e agitações cinefílicas organizadas pelos pioneiros, nos primórdios da Nouvelle Vague. Muito pelo contrário. No entanto, acreditamos que este momento é tão somente uma carta de intenções e não totaliza absolutamente a "postura rebelde" do grupo, isto é, não basta, como o quer Sukman. Isto no sentido de que, do advento da Cahiers até o Acossado (59), existem dois movimentos explícitos e paralelos: um que nega o passado e o presente do cinema francês (e mundial); outro que constrói um "paideuma cinefílico" (para usar a terminologia poundiana), um estilo crítico (diverso, porém, coerente); e alguns dos mais belos filmes da história do cinema. Os impropérios são um molho, um sinal (assinalar uma situação revolucionária). De modo que a "doce irresponsabilidade" a qual Sukman alude com certo orgulho, "obrigação de um crítico", não pode ser identificada com a Nouvelle Vague. Era, como nos dizeres de Barthes, um sinal de distinção, "além da linguagem". Entendemos, pois, de modo contrário à análise defensiva de Sukman: como os jogadores de futebol (Romário em 94, por exemplo) Truffaut e os outros "chamaram a responsabilidade para si". Por outro lado, a revolução da Nouvelle Vague não foi puro diletantismo. Foi uma reforma política. Um modo de reestruturar o cinema e o que se dizia dele. Uma postura absolutamente necessária e relevante. Não concordamos com Sukman e não endossamos esta conjunção de irresponsabilidade e irrelevância que ele utiliza para identificar o trabalho dos franceses com o seu. De modo algum estabelecemos esta "irresponsabilidade" como ideal de crítica cinematográfica. No mais, rebeldia não é irresponsabilidade: é tomar o jogo, tornar-se responsável pelo futuro e pela reconstrução do passado. E consideramos um erro lógico defender a "irresponsabilidade" e a "irrelevância" da crítica através de um exemplo tão relevante e responsável. A "responsabilidade", como quer Carlos Diegues, é uma questão de cultura e sensibilidade. E um ato político. Não é um problema de disciplina ou cortesia. Responsável, mas não pelo "irmão menor", o outro, e sim, pela própria vida. Assim foi com Godard e Truffaut.

Outro exemplo que Sukman emprega em sua análise, cujo conteúdo consideramos, de certo modo, duvidoso, é a referência a Paulo Emílio Salles Gomes. Transcrevemos o trecho:

É a mesma postura do maior crítico brasileiro, teórico e não impressionista, Paulo Emílio Salles Gomes, quando divulgou a idéia absurda de que o pior filme brasileiro era melhor do que o melhor filme estrangeiro, contrariando até mesmo seu culto pensamento cosmopolita, mas dando suas idéias à palmatória de um meio político e cinematográfico colonizado.

Ora, como simplificar um momento fundamental, através da citação de um ato, quando este engloba uma noção de responsabilidade para além da que propomos acima? Paulo Emílio era o "responsável" interlocutor entre o público e os filmes. O "relevante" intérprete e inventor de uma história do cinema brasileiro. Vislumbrava a possibilidade de construirmos uma cinematografia que se inscrevesse num lugar de destaque na história. Buscava, através da leitura de nosso passado cinematográfico, algo maior que crítica cinematográfica: um indicativo para a pergunta "o que é cultura no Brasil"? Mas não propunha um cinema-decalque dos russos, italianos, franceses,... Procurava analisar o cinema sem excluir obras de nível comercial, contrariando a inteligentsia, realmente, colonizada do Brasil, "O pior filme brasileiro é melhor que o melhor filme estrangeiro" não é uma frase de efeito, nem uma idéia absurda, nem pretexto para exibições intelectuais. É uma idéia que circunda a obra de Paulo Emílio a partir da sua "auto-desalienação", isto é, quando constata, arrependido, um passado de ignorância e desinteresse:

Meu caso pessoal é exemplar e deplorável. Em torno da década de 40 até meados da seguinte eu já me interessava muito por filmes, mas cinema brasileiro para mim era como se não existisse.

Não culpo ninguém pelo retrógrado que fui mas o fato é que durante anos a fio — décadas — não conheci uma única pessoa com cultivo de cinema brasileiro. Quando cruzei com Humberto Mauro, no INCE, uma manhã de 1940, não lhe liguei a mínima2.

Este testemunho basta para entendermos quão complicada é a passagem deste Paulo Emílio auto-crítico para o Paulo Emílio militante do cinema brasileiro (sem que essa palavra pese com radicalismos). Fica, portanto, intrincada a compreensão ou avaliação do que foi dito. Hugo Sukman parece desconhecer um movimento muito semelhante ao de Paulo Emílio, que foi o de Alex Viany. Ambos trabalhavam com conceitos "absurdos" aos olhos pouco atentos. Quem se dispuser a avaliar os conceitos — nos mais diversos textos — verá que se trata menos de "dar suas idéias à palmatória" do que criar um sistema possível para compreender a grandeza de nossa história cinematográfica. (Santa responsabilidade, Batman!)

Maria Rita Galvão, importante historiadora e figura absolutamente interessada pela questão prefacia o genial Introdução ao cinema brasileiro, de Viany:

A diferença fundamental é a valorização da produção brasileira dos anos 30 e 40 — sobretudo a comédia, mas também o melodrama popular, e ainda alguns filmes que a seu modo tentavam uma diversificação temática para o cinema brasileiro, (...)

Estes filmes — fundamentalmente a chanchada — provocaram o afastamento do cinema nacional de várias gerações de críticos que lutavam pela "criação" no Brasil de um "verdadeiro cinema".

Maria Rita se refere à geração de Paulo Emílio, nos tempos em que se alienava da produção nacional. Uma figura emblemática é a de Ruy Coelho. Uma saída clássica e radical é sistematizada por Viany e, abaixo, abordada por Maria Rita:

Por que esse desprezo generalizado pela chanchada, sem que as pessoas se perguntassem que possível papel social e cultural ela poderia representar? Afinal havia, pelo menos nos anos 40, um movimento de afirmação do cinema brasileiro diretamente relacionado ao enorme sucesso da chanchada junto ao público popular.

Na realidade, a impressão que se tem hoje é a de que o cinema brasileiro tão severamente criticado pelos poucos que dele tomavam conhecimento era qualquer coisa de extremamente indefinido. Ninguém sabia realmente do que se tratava, como eram de fato esses filmes, e talvez o crítico Ruy Coelho — exemplo clássico! — não tenha sido o único a não ver e não gostar do que não viu. A chanchada era, em essência e por definição, algo de "vulgar", popular no mau sentido da palavra, produto destinado a um público grosseiro. À crítica "intelectualizada", repugnava na chanchada aquilo que ela tinha de mais aparente: alguns cômicos careteiros, o humor chulo, a improvisação, a pobreza de recursos e de linguagem, a produção rápida e descuidada. Alex Viany, no entanto (além de apontar a adequação ao mercado no nível da própria produção) enxergava nela um outro tom popular — num sentido diverso da palavra —, de vida cotidiana, reflexo de uma série de atitudes e modos de ser da gente carioca, uma espontaneidade um tanto crua mas verdadeira — possíveis componentes, estes também, da "brasilidade"3.

Como podemos constatar, o exemplo de Sukman deveria ser acompanhado por notas de pé de página. Não é tão simples e "irresponsável" citar a labuta de Paulo Emílio — e consequentemente, a de Viany — sem que esses fatores sejam esclarecidos. Ismail Xavier, por exemplo, é o crítico que irá "ler" nas entrelinhas desta visão de Viany, e a partir dela, os desdobramentos no pensamento de Paulo Emílio.

A crônica e a aula (a respeito de PE) como conversa; a idéia do cinema como espaço democrático onde todos têm o direito à fala sem inibições, a reiterada discussão de filmes em correlação estreita com o político e o social; as reflexões que freqüentemente mobilizam a reminiscência pessoal, a referência a fatos curiosos e as associações mais abrangentes — estes são dados que se articulam em torno de uma concepção da cultura como diálogo sem hierarquias. Dentro desta matriz, a produção — de filmes, de textos, de saberes — é um elemento parcial da dinâmica cultural, a qual só se completa com o movimento de retorno deflagrado pela recepção, do público e da crítica, dos cineastas e outros artistas, todas sendo decisivas. Sublinhando este aspecto dialógico da vida cultural, Paulo Emílio privilegia a noção de processo: concebe todo um movimento orgânico que se faz da interação entre filme e sociedade, crítico e cineasta, obra e público, movimento cuja cristalização maior é o trajeto de uma cinematografia no tempo.

Na integração de experiência que engloba cinema, cultura e política, Paulo Emílio elabora um estilo de reflexão fortemente pessoal, intransferível. Mobiliza um conjunto de fórmulas para uso próprio, encontrando a dosagem oportuna que lhes garante plasticidade e eficácia. Sua relação peculiar com o cinema brasileiro é, neste sentido, um exemplo do seu jogo de tramas bem urdidas onde podemos verificar o ajuste do estilo da reflexão a seu objeto, mesmo quando o desafio maior foi o de trabalhar a tensão entre o amor ao cinema brasileiro como processo e a insatisfação diante de boa parte dos filmes. Pode-se dizer que, dos anos 50 aos anos 70, na disputa entre o consagrar perfeições e o delinear processos, a segunda opção ganha terreno e privilégio, chegando ao ponto de maior domínio no cronista jacobino do Jornal da Tarde. No nacionalismo radical de 1973, o princípio dialógico permanece vigente mas assume uma conotação particular; o crítico decide simplificar e ataca a questão pelo ângulo que lhe interessa, provocando o espectador ilustrado e advertindo-o para o horizonte de esterilidade presente em sua relação com o cinema: na defesa do contato exclusivo com o filme nacional, destaca a oposição entre recepção passiva — colocada inteira do lado do consumo do filme estrangeiro, sobre o qual não influímos, não devolvemos experiência — e recepção ativa — colocada em conexão exclusiva com o cinema brasileiro diante do qual nossa resposta é vista como momento essencial de um processo de que, queiramos ou não, fazemos parte.

Não é simplesmente uma forma de fazer valer a aventura do cinema no Brasil. A frase "o pior filme brasileiro..." não é somente uma frase de efeito, já o dissemos. Mas implica o agenciamento do cronista com o público; do teórico erudito, com as diversas camadas e problemas da sociedade; do vínculo, a um só tempo, entre estética e política (mais uma vez, Rossellini: "Os estetas acampam nos degraus dos palácios"). Serve também este trecho a um propósito tangente à nossa discussão: o papel da crítica, como algo além da definição de Sukman, cujos anseios são por demais simplórios e, de certo modo, justificam as reclamações de Carlos Diegues. Portanto, não acreditamos que a tal "conversa tríplice, recheada de informação e pontos de vista estéticos" possa ser a definição, ou a função, ou o que quer que seja da crítica cinematográfica, se o próprio Sukman se dirige de modo repreensível aos leitores, isto é, irresponsável num sentido extrínseco à rebeldia de Paulo Emílio, Alex Viany, Roland Barthes, François Truffaut, Jean-Luc Godard, ...

O que dizer, então, de "voltar a xingarmo-nos uns aos outros na maior irresponsabilidade"?

1. Por exemplo, o tom com que Godard levava suas críticas, que pode ser conferido no tomo 1 de Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard,  editado pela Cahiers du cinéma, 1998.

2. Paulo Emílio, um intelectual na linha de frente, org. Carlos Augusto Calil e Maria Teresa Machado, Ed Brasiliense em conjunto com Embrafilme e o Ministério (mistério) da Cultura, 1986,
pp. 320-2.

3. Perdão pelo corte desmesurado. Mas gostaríamos de fazer uma analogia do que foi dito sobre a chanchada com o que hoje é dito sobre a música popular, a saber: pagode e axé music, além de figuras como Vinny e Tiazinha, DJ Malboro e todo o funk rio são sistematicamente desprezados pelos críticos de música popular. Por quê? Se a resposta for: "porque é ruim", "porque é grotesco", "porque é comercial", etc. muito teremos que discutir. Mandem e-mails. Cinema é mercado, mas mercado não é cinema.