Crítica, Cinema Brasileiro e Irrelevância

por Ruy Gardnier

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François Truffaut é chamado à discussão
para a defesa de uma crítica 'irrelevante'

Não importa quais sejam os motivos que levaram o cineasta Carlos Diegues a fazer a crítica de jornal rever seus procedimentos e colocar em questão especificamente o modo pelo qual o jornalismo de cinema é praticado. Se antes as únicas coordenadas do jornalista eram o espaço (sempre reduzido) de que dispunha e a orientação de seu editor, parece que agora é necessário que volte à cena mais um fator: a responsabilidade. Não é de hoje que se faz a crítica desses novos jornalistas de cinema (sobretudo os dos grandes jornais do Rio), pela sua imperícia, pelo seu conhecimento enciclopédico mas não analítico, mas sobretudo pela sua arrogância de menino bem nascido (Luís Carlos Lacerda e Neville d'Almeida já o fizeram nos devidos momentos).

Agora, com Cacá Diegues, parece que algo mudou. Não que "nada será como antes". Será, infelizmente, porque o jornalismo cultural dos grandes jornais está cada vez menos disposto a trabalhar os sentidos e os valores dos produtos culturais de que ele fala. Ele inclusive nem dispõe de recursos humanos para isso. Entretanto, especificamente no que se refere ao cinema brasileiro, parece ter-se instaurado um insólito tribunal da consciência, como se os críticos devessem "olhar por ondem andam" antes de dizer algo apressado. Resta uma pergunta: esse tribunal é bom ou ruim? Vejamos.

O cinema brasileiro significa muito mais do que qualquer outro cinema para nós. Ele é fonte infinita do que achamos de nós mesmos, do caminho que vamos trilhar, da nossa história que está continuamente por construir. Nesse sentido, ele é para nós o mais antropológico, o mais político, e ao mesmo tempo o mais belo cinema do mundo. É isso o que quer dizer "o pior filme brasileiro é melhor que o melhor filme estrangeiro", frase de Paulo Emílio Salles Gomes que é tão absolutamente incompreendida quanto citada. Os jornais pareciam não dar conta disso. Daqui para frente, continuarão não dando conta. Filmes como Cinderela Bahiana e Navalha na Carne foram rechaçados pela imprensa cinematográfica (que é sempre complicado associar ao termo crítica). Ora, ruins ou bons, esses filmes dão muito pano pra manga, muito mais que os filmes estrangeiros (bons ou ruins) ou até do que os filmes brasileiros mais "isentos" (Jenipapo, O Quatrilho). A cada filme brasileiro é um novo horizonte que se abre para a reflexão nacional, para os caminhos do cinema brasileiro e do próprio Brasil. Nesse sentido, o tribunal é bom. É bom saber que a inconseqüência, mesmo que por travas mecânicas, será impossibilitada de se desenvolver.

Os críticos do tribunal se sentem restringidos de seu direito de se expressar? Mas em nenhum momento isso foi questão! A última coisa que queremos é que se fale bem de todo cinema brasileiro. Não queremos é a impropriedade. Por que as críticas reclamam das dublagens do cinema nacional mas quando chega a hora de falar no Fellini ninguém fala que é um lixo? As dublagens italianas são piores, certamente. E isso torna seus filmes (a dublagem foi istituição na Itália por um bom tempo) ruins? É claro que não. O problema é que o brasileiro (inclusive os críticos da grande imprensa) tem um imaginário moldado pela telenovela no que diz respeito a ver os brasileiros na tela. Ele não tem a menor idéia de interpretação, para ele tudo deve ser reduzido ao naturalismo ou ao teatralismo ("e é bom que essas coisas não se misturem!").

Que haja filmes ruins, é natural. O que não é natural é que se pregue uma irresponsabilidade estranha, como faz o sr. Sukman. Primeiramente uma irresponsabilidade associada à necessidade que os homens do Governo e empresários têm em demitir (e não há comentários possíveis para esse tipo de associação), depois uma irresponsabilidade em relação ao diretor, ao exibidor e ao público. Se ele prega tanta irresponsabilidade, que responsabilidade deveriam ter todos esses outros ao vê-lo andar pela rua? Há uma diferença abissal entre irrelevância e irreverência. O trabalho de um crítico jamais é irrelevante. O crítico é o contraponto do diretor para o público. Ele pode ser irreverente, ou até desrespeitoso (como foi Truffaut), mas nunca irrelevante. Essa é a covardia dos homens de Governo e empresários ao afirmar que não podem fazer nada senão demitir. É tirar o seu da reta.

Uma crítica é um juízo de valor. Ela deve operar um desvio, construir articulaçõers com os elementos de um filme. Uma crítica não é um adendo, não é um complemento e muito menos um substituto. É um outro caminho, uma tomada de posição. A crítica é uma fuga da virtualidade da opinião para dar lugar à realidade de uma construção. Uma crítica não é nenhuma conversa tríplice, muito menos uma palhaçada com "pontos-de-vista" estéticos. Pontos-de-vista, além de ciscos, são opiniões. E opiniões, bem-fundadas ou não, continuam sendo opiniões: estão no reino preconceituoso do senso-comum. E é bom que ninguém se esconda atrás do espectro majestoso de François Truffaut. Se ele era irrelevante e desrespeitoso, ele o era para o cinema institucional de "qualité française", que é o mesmo tipo de cinema que os jornalistas de cinema do Brasil hoje admiram e pregam para o cinema brasileiro. Escrever sobre cinema no Brasil, hoje, envolve sim uma responsabilidade. E é bom enfrentá-la de frente antes de se esconder nas teorias dos outros. Godard dizia — baseado nessa crítica dos anos 90 — que a principal diferença entre um crítico e um espectador é que o crítico não paga o ingresso. Nesse sentido, CONTRACAMPO é público. E se ser crítico é ser irresponsável e irrelevante (sentido sukmaniano, não truffautiano), é melhor mesmo ser público.