Cinema Americano: A história de um país

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John Cusack, Irma P. Hall e Kevin Spacey em Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal, de Clint Eastwood.

Primeiro dizem pra gente: "Bom, existe o cinema de arte, que é antes de tudo europeu, produto da alta cultura do Velho Mundo, esse é o cinema que é sublime!" Depois, dizem: "Aí tem o cinema americano, que é pura indústria, repetição de fórmulas esgotadas e palco para o star-system hollywoodiano". Por fim, contemporizam: "Mas tem também um cinema americano 'de autor', representado pelos diretores independentes, um cinema verdadeiramente culto, inteligente." Estranha geopolítica do cinema, quase uma Guerra Fria, tendo como síntese um Plano Marshall às avessas (a Europa ensina a América a fazer o bom cinema). Essa geopolítica, entretanto, continua encrustada na cabeça das pessoas, e não nos parece haver algum motivo para isso. Por que motivo, então?

Por elitismo cultural, primeiramente. Não haveria outra razão para perder tempo com os filmes acadêmicos recentes da China continental, da Alemanha, inclusive os da França e da Itália, excetuando-se apenas um ou outro. O cinema europeu é um cinema de exclusão? Sim. Mas o que os diretores fazem com isso? Filmes empedernidos, extremamente sofisticados e visualmente belos, mas para quê? Para o deleite gélido. O cinema-de-autor nasceu, evoluiu e hoje atinge sua cristalização. Angelopoulos, Greenaway, Frears, o finado Kieslowski... eles, que queriam nos dizer alguma coisa nos anos 80, abdicaram definitivamente desse desejo nos anos 90. O esteticismo assume agora seu pleno domínio em torno desse cinema neoacadêmico, dominado por um imaginário ora publicitário (Beineix, Kieslowski), ora pictural (Davies, Greenaway), ora cinema-de-autor (Zhang Yimou, Angelopoulos)... Há poucos que ainda se interessam em explodir qualquer imaginário, e esses geralmente não vêm da Europa (Kitano, Wong, Tsai, Hou... mas também Almodóvar, Moretti, Oliveira). Já existe inclusive uma nova geração de acadêmicos, encabeçada pelo cineastastro Michael Winterbottom.

Esteticismo primário, domínio do cinema velho: nada mais longe disso que o atual cinema americano, ou ao menos a parte que realmente interessa dele. O cinema americano é o único cinema histórico de hoje. Existem os cineastas da história: Almodóvar na Espanha, Oliveira em Portugal, Kiarostami no Irã, Johan van der Keuken na Europa inteira. Mas são apenas casos isolados, exceções de um sistema. Com o cinema americano, é ao contrário: até os piores cineastas, de Joel Schumacher a Oliver Stone, são "históricos", no sentido em que tentam pensar sua época. Quanto aos grandes cineastas, então, não há possível discussão: David Lynch, Clint Eastwood, Todd Haynes, Spike Lee, John Carpenter, Wes Craven, Joen Coen, Jim Jarmusch: todos eles pensam a sua América. Como deixar de aproximar o massacre de Denver dos dois assassinos de Pânico? Ou a vida secreta do "dono" da cidade de Savannah (Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal) com os recentes escândalos na Casa Branca? Não que o cinema americano só valha pelo seu sentido de  "prever" os acontecimentos. Longe disso, é antes um cinema da ação do que da reflexão (reflexão por reflexão, o espelho faz melhor...). Propor retratos, fazer sua própria história. Como desvincular A Estrada Perdida de todo um universo paranóico que se estabelece (dos EUA para o resto do mundo) a partir do medo da violação do lar, do caráter fetichista da mercadoria (os carros), do medo do além, do desconhecido?

Podemos inclusive jogar a questão para cineastas que, apesar de inteligentes, são extremamente comerciais. Quem Vai Ficar com Mary?, dos irmãos Connely, por exemplo. Há nele muito mais sociologia do que em Felicidade, filminho pseudo-de-autor, dirigido pelo cult Solondz. Em matéria de cinema político, a coisa fica ainda mais visível. Como não dizer que Tropas Estelares, de Paul Verhoeven, é um filme muito mais político do que o Taxi de Saura ou o Terra e Liberdade de Ken Loach? Longe da revolução idílica pintada como volta aos antigos valores libertários do passado ou da constatação ultrapassada dos microfascismos da Nova Europa, Tropas Estelares dá carne a todo o conjunto: militarismo, contágio pelo grupo, espírito coletivo, valores guerreiros — tudo que acontece e não queremos ver, enfim. Algo disso no cinema europeu? Não. Qual é o único filme explicitamente político, de reivindicação, lançado nos cinemas em 1999 até agora? Crime Verdadeiro, de Clint Eastwood.

Pode-se contrargumentar que essa é a única opção da América, pois sendo um país novo, restaria ao meio dominante, o cinema, de traçar a sua história. O argumento é correto. Mas isso não isenta a Europa de fazer um cinema desgastado, cheio de más afetações literárias, mergulhos na mesmice. O cinema europeu (como sua literatura, com Camus, Sartre, Beckett) já foi histórico, talvez o mais histórico de todos os tempos, o italiano (encabeçado pelo sempre incompreendido Rossellini). Mas hoje não é mais nada disso. Perdido politicamente, envolvido numa nova perspectiva de unidade continental, a meio caminho entre a social-democracia perdida e as injunções da nova economia, responde um cinema fraco, que não tenta fazer as perguntas porque ou não sabe o que quer ou porque não quer que ninguém responda. Mas contra ele, existe um cinema militante, um cinema que coloca os pontos nos ii, que nos faz ver antes de nos dar a ver. O cinema americano.

Ruy Gardnier