Alphaville e a Semântica Geral

por Jayme Chaves

Alameda Oppenheimer, rua Enrico Fermi, cidade de Alphaville: endereço do Instituto de Semântica Geral. O tempo é o futuro. Lémy Caution, agente secreto, para lá se dirige. a fim de encontrar a filha do Dr. Von Braun, inventor do Raio da Morte. Encontra também um sistema de lavagem cerebral — ou "programação neurolingüística" — conduzido pelo supercomputador Alpha 60, que controla a vida da metrópole. O objetivo do instituto é educar e "reeducar" os cidadãos para um modo de vida inteiramente baseado nos postulados da ciência moderna, não-aristotélica.

No filme de Godard, Alpha 60 (interpretado por uma "voz" recém-operada das cordas vocais) recita várias passagens escritas pelo conde polonês Alfred Korzybsky (1879-1950). Desenhos e diagramas de sua autoria são mostrados na tela. Korzybsky inventou a Semântica Geral e fundou o seu Instituto, que existe de fato e localiza-se em Lakewood, Connecticut, EUA. Expôs seus princípios no livro Science and Sanity: An Introduction to Non-Aristotelian Systems and General Semantics (1933).

É difícil resumir aqui os postulados desta curiosa "ciência". Trata-se de uma mistura original de lingüística, filosofia e psicologia, sob a égide da matemática, e que se propõe substituir a assim chamada estrutura aristotélica da linguagem por outra mais condizente com os complexos problemas levantados pela ciência moderna. Não se trata apenas de uma mudança de orientação no conteúdo da aprendizagem. A estrutura de nossa linguagem deve ser modificada, pois ela condiciona psicologicamente o nosso pensamento, nosso comportamento e nossa apreensão da realidade, que deriva diretamente das reações semânticas concomitantes a essa estrutura.

S.I.Hayakawa, em seu artigo O que é estrutura aristotélica da linguagem (in Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem, org. Haroldo de Campos, Cultrix) enumera quatro características básicas da linguagem indo-européia (aristotélica):

1) Identidade: tendência a confundir palavras com os objetos designados. Ex.: "isto é aquilo". Korzybsky, contrariando Borges, dirá: "o mapa não é o território, a palavra não é coisa que descreve. Sempre que o mapa é confundido com o território, instala-se no organismo uma perturbação semântica. A perturbação continua até serem reconhecidas as limitações do mapa".

2) Abstração: tendemos a abstrair elementos isolados do objeto ou sensação designado, separando-os uns dos outros, perdendo a apreensão de sua totalidade e "obscurecendo ou ocultando por completo os relacionamentos funcionais", nos diz Hayakawa. E Korzybsky: "Ao fazer uma afirmação quanto a um objeto ou acontecimento, um indivíduo apenas abstrai algumas de suas características (...) A consciência da abstração constitui uma das diferenças fundamentais entre uma pessoa semanticamente treinada e outra que não o esteja.

3) Abstração infinita. Korzybsky: "tende consciência da AUTO-REFLEXÃO. Uma afirmação pode ser acerca da realidade ou pode ser acerca de uma afirmação acerca de uma afirmação da realidade".

4) Dois valores: "verdadeiro" e "falso", "certo" e "errado", "branco e preto",   "contra" e "a favor". Segundo o conde, as afirmações de Aristóteles (...) foram provavelmente as mais completas disponíveis durante o seu tempo (...) mas elas continuam a ser a base das opiniões e crenças da maior parte das pessoas". E ainda: "Sempre que uma pessoa reage a uma situação nova ou alterada como se ela fosse velha e inalterada diz-se que ele ou ela está a identificar. Esta visão da vida é aristotélica".

Em Alphaville, Godard provoca pequenos choques semânticos entre o filme e o objeto filmado. O tempo é o futuro, mas o que se vê é a Paris dos anos 60. É um filme de ficção científica, mas se representa como um policial noir. Recita a Semântica Geral. Mistura "Figaro" com "Pravda". E beira o surrealismo, como na cena das execuções. O filme é um objeto não-divisível, e deve ser percebido em seu sistema de interligações. Também deve ser apreciado com uma lógica não-aristotélica, como aliás toda a cinematografia de Godard, que não comporta dois valores. Esse é e tem sido o grande problema da arte moderna, que propões situações novas mas é apreendida através de parâmetros velhos.

Mas Godard coloca a Semântica Geral como a filosofia (ou disciplina, como queria Korzybsky) dominante de um estado totalitário. Ele sem dúvida deveria cohecer a alucinante crença do conde na criação de uma terapia médico-psiquiátrica — que incluiria a intervenção cirúrgica — que modificasse o sistema nervoso do homem, fazendo com que fosse possível assimilar novas estruturas de pensamento e linguagem. Assim o homem estaria livre para reagir no complexo universo da mecânica quântica, por exemplo, livre da patologia aristotélica de um mundo que já não é mais aristotélico. O aparente messianismo fascista de tais afirmações se choca com as múltiplas possibilidades que elas evocam. Daí a riqueza, a bizarria e o atrativo do pensamento de Korzybsky quem, ao lado de opensadores tão diferentes quanto Spengler, Gurdjeff, MacLuhan e Norbert Wiener, foi um dos grandes "organicistas" do século.

Obs.: As citações de Korzybsky foram todas pinçadas de outra obra de ficção científica que aborda a Semântica Geral. Trata-se de Os Jogadores de Zero-A (The Players of Null-A), de A.E.Van Vogt, que descreve uma sociedade no futuro regida pela Máquina, e na qual os personagens enfrentam situações "Zero-A", ou seja, não-aristotélicas. Teria Godard lido Van Vogt?