por Rafael Viegas
A velha frase com que se enamoravam os súditos no Grande Império [O Rei está morto, viva o Rei!] ganha mais sentido agora, que não há nada a ser colocado no seu lugar. Uma espécie, não de vazio claro, isto não existe , nem de saudade tampouco isto! , mas de júbilo negativo e parricida, pela morte do Grande Pai, pela alegria acridoce de alguém que nos deixou (o sortudo!), obliterados pela memória, sacrificados pela procura eterna de um substituto. Observando o Oscar na televisão temos uma idéia precisa do que se trata.
O processo de reconhecimento de uma obra não é imediato, por isso existe a história e os que fazem história. Neste último campo dos saberes, posto que somente a experiência empírica e concreta dos homens pode nos revelar a sua qualidade e a sua permanência, está um seleto grupo de objetos notáveis: Franz Kafka, Carl Theodor Dreyer e Stanley Kubrick. Por que Stanley Kubrick está na galeria dos notáveis? Nem mesmo eu sei dizer. A foto de Kubrick apareceu no jornal anteontem e decidi pôr eu mesmo, em definitivo, a sua efígie no seleto grupo dos homens. E também porque Stanley Kubrick está morto.
Em Michelângelo nós temos o seguinte processo em gestão: a crise do corpo (que espécie de bárbaro poderia considerar mais belo o calçado e não o pé que está dentro dele?) na crise do espírito. Por quê? Porque as mãos não foram feitas para pensar, nunca souberam operar o espírito, nunca processaram a alma. A situação da pintura italiana do quatro e do cinquecento é a de produzir uma história completamente nova, na sua relação com o antigo, que na verdade é tão somente a conquista do moderno, do inédito e do canibal.
Non ha l'ottimo artista alcun concetto
c'un marmo solo in sé non circonscriva
col suo superchio, e solo a quello arriva
la man che ubbidisce all'intelletto.Il mal ch'io fuggo, e 'l ben ch'io mi prometto,
in te, donna leggiadra, altera e diva,
tal si nasconde; e perch'io più non viva,
contraria ho l'arte al disïato effetto.Amor dunque non ha, né tua beltate
se dentro del tuo cor morte e pietate
o durezza o fortuna o gran disdegno,
del mio mal colpa, o mio destino o sorte;
porti in un tempo, e che 'l mio basso ingegno
non sappia, ardendo, trarne altro che morte.Para Kubrick, a aventura tem um significado diverso. Ela se mescla com a própria ciência e com a paraliteratura. De que ciência se trata? Ciência do espírito? Certamente, num sentido amplamente diverso do de Hegel. Que Hegel? Num sentido completamente diverso. A pesquisa audaciosa de 2001, a putaria tecnológica que vai para o céu, não toma conhecimento das velharias de efeitos-especiais. Não há qualquer menção a efeitos-especiais, a não ser que a completa masterização do inconsciente coletivo dos gigantes seja considerada parte de sua forma e modelo. Dos Passos, quero dizer, Kubrick, não faz montagens de cinema subconsciente, nem atira com arminhas de futebol. Que imbecil provocaria um escândalo com um filme tecnológico que começasse com pedras, animais pretos corcundas e um pedaço de osso? Ele. E o filme termina com uma apoteose de Luís XV, depois da incrível seqüência completa de Atmosphères de György Ligeti, todos os nove minutos em que o cinema serviu à música de forma tão delicada, tão sufragiante, tão inédita. Que outro imbecil, que morre deixando um filme que dizem ser perfeito, faria isso? Eu tenho dúvidas quanto a perfeição mas eu sei seqüências inteiras de Two thousand and one: "Dave, this conversation conserves no propose anymore. Goodbye." Como num poema das Rime, articulado entre a dissolução do infinito e o ambiente espiritualmente mudo do metrô europeu. Quem vai querer a banana do capital? Marx, moldado por formas erodidas, ou seu xará suspeito o que escreveu uma monografia sobre Philippus Theophrastus , aparece no tal objeto preto azulado, circunspecto, babão, o pacote de Cheetos, enviado à aldeia de Tungstown, perto do riacho Malakovitch, Geórgia. Um pacote cheio da absoluta necessidade de ser virgem e de demonstrá-lo aos seus filhos incriados.
De virginitate. Aparentemente, Santo Agostinho mas Tertulliano.
Mas 2001: A Space Odyssey. Aparentemente, Stanley Kubrick.
(1968)
Production Company Metro-Goldwyn-Mayer?
Producer Stanley Kubrick?
Director Stanley Kubrick?
Screenplay Stanley Kubrick, Arthur C. Clarke, based on Clarke's shortstory "The Sentinel"?
Photography Geoffrey Unsworth?
Screen Process Super Panavision, presented in Cinerama?
Color Metrocolor?
Additional Photography John Alcott?
Special Photographic Effects Designer and Director Stanley Kubrick?
Editor Ray Lovejoy?
Production Design Tony Masters, Harry Lange, Ernie Archer?
Art Direction John Hoesli?
Special Photographic Effects Supervisors Wally Veevers, Douglas Trumbull, Con Pedereson, Tom Howard?
Music Richard Strauss, Johann Strauss, Aram Khachaturian, György Ligeti?
Costumes Hardy Amies?
Sound Winston Ryder?
Cast: Keir Dullea (David Bowman), Gary Lockwood (Frank Poole), William Sylvester (Dr. Heywood Floyd), Daniel Richter (Moon-Watcher), Douglas Rain (HAL's Voice), Leonard Rossiter (Smyslov), Margaret Tyzack (Elena),Robert Beatty (Halvorsen), Sean Sullivan (Michaels), Frank Miller (Mission Control), Penny Edwina Carroll, Mike Lovell, Peter Delman, Dany Grover, Brian Hawley?
Running Time: 141 Minutes?
Distributor: Metro-Goldwyn-Mayer, Films Incorporated/16?Magnus es, domine, et laudabilis valde: magna virtus tua, et sapientiae tuae non est numerus.
O cinema se compõe de traços eminentemente modernos. Kubrick sabia disso e teria feito péssimos filmes de terror caso optasse pela genialidade que sempre se lhe opuseram os outros. Para Kubrick, portanto, o ideal do sublime escapa à Gelassenheit. O tecnologista simplório nunca advirá de tamanha competência, graça e saúde pública e coletiva. Mas dará banho com o charme do mal e da masturbação in vitro, sua pele circunvoluída até a morte, o chão completo de anamnese volátil e preta. Il mio basso ingegno non sappia, ardendo, trarne altro che morte, sejam suas palavras finais. Ou não. A pose de Santo Antônio.
Izesuq Kilistoq